Por Lara Mireny
Embora a solidariedade não seja um ato de bondade constantemente praticado na sociedade, ajudar o próximo tornou-se parte do dia a dia de diversos projetos sociais que prestam assistência às pessoas que vivem nas ruas da cidade de Vitória, no Espírito Santo. Com o objetivo de amenizar essa situação de vulnerabilidade social, voluntários buscam resgatar a dignidade dessas pessoas que são consideradas invisíveis. Essa é a última reportagem multimídia da série "Olhares de Rua". Confira a primeira: A invisibilidade social, os preconceitos e as dificuldades do ser humano em situação de rua na cidade de Vitória. E a segunda: Perda de emprego e de vínculos familiares estão entre os motivos que levam as pessoas a morarem nas ruas.
Dentre os projetos realizados na capital do estado, o Grupo Ajude o Próximo (GAP) atende os moradores em situação de rua há seis anos. Segundo o presidente da instituição, Kelvim Amaral, a ideia de criar um projeto como esse partiu da necessidade de ajudar aqueles que mais precisam de atenção. “Comecei a realizar essa ação pois senti uma enorme vontade de fazer algo para amenizar a dor do próximo. Não adianta ficar somente lamentando e sentado sem fazer nada. Eu decidi colocar em prática”, fala.
Para o presidente do GAP, mudar o cenário de desabrigados dormindo nas ruas só será possível a partir do momento que a população deixar de considerar os moradores em situação de rua como seres invisíveis. “Quando a sociedade ver que todos nós somos iguais o mundo ficará melhor, pois devemos amar o próximo como amamos a nós mesmos, então não devemos julgar e sim ajudar”, ressalta.
Amaral informa, ainda, que o grupo formado por uma média de 30 voluntários já conseguiu retirar algumas pessoas das ruas e reintegrá-las na sociedade. Dentre elas há uma mulher de 30 anos que fugiu de casa por ser vítima de estupro, e, hoje, com o apoio da instituição, tem a própria casa. Outra pessoa que retornou ao convívio da sociedade é o músico capixaba Elias Belmiro, que, devido ao uso abusivo do álcool, foi parar nas ruas. No entanto, com o amparo que recebeu, conseguiu largar o vício e conquistar um lugar para chamar de lar.
REINSERÇÃO
Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a rua tem saída. Em 2019, o programa da Prefeitura de Vitória chamado Rede Escola da Vida retirou 190 pessoas da situação de rua. O número equivale a um aumento de 150% em relação ao ano de 2018. São casos de reinserção familiar e comunitária, inserção no Programa Moradias Alternativas, no mercado de trabalho formal e retorno à escolarização.
Foi também em 2019 que a Rede Escola da Vida recebeu o Prêmio Cidades Sustentáveis, com o primeiro lugar na categoria Cidades Médias (de 101 a 500 mil habitantes). A iniciativa, que teve início em 2013 e foi implementada em 2015, inclui serviços de atendimento psicossocial, oficinas profissionalizantes, encontros motivacionais e encaminhamento ao mercado de trabalho.
Um dos serviços que compõe o programa é o Centro de Referência para População de Rua (Centro-Pop) que passou a contar com um registro significativo na procura pelos atendimentos. Em 2013, foram 105 pessoas. Já 2019 apresentou um total de 831 pessoas atendidas. Em 2020, entretanto, o número foi menor em razão das restrições impostas pela pandemia. Dados registrados até o dia 18 de setembro apontam que 635 pessoas procuraram pelos serviços de atendimento psicossocial, oficinas, alimentação e higienização.
O fundador do projeto Luz e Esperança, Rodrigo Bertoldi, diz acreditar na reinserção social e familiar dos moradores em situação de rua. Segundo ele, houve algum momento obscuro e complicado na vida dessas pessoas que as levaram a viver nessa condição de vulnerabilidade e fraqueza. “Foi um ponto crucial para elas deslavarem totalmente até chegarem às ruas, mas eu acredito sim que tem recuperação”, afirma.
PANDEMIA
Em meio à pandemia enfrentada pelo novo coronavírus, a solidariedade é ressignificada. Doações de alimentos, roupas, máscaras e produtos de higiene foram algumas das ações solidárias doadas para os moradores em situação de rua de Vitória.
No início do mês de março, em 2020, enquanto muitas pessoas estavam entrando em quarentena para se proteger do vírus da Covid-19 no lar aconchegante e seguro de suas casas, outras não tinham para onde ir, a não ser nas ruas. Rodrigo Bertoldi incomodado com essa situação, se questionou a ponto de querer fazer a diferença.
“Veio a pergunta: onde que essas pessoas vão ficar se elas não têm casa? Então a gente teve mais inspiração para ir ao encontro delas”- Rodrigo Bertoldi, fundador do Luz e Esperança
O fundador do projeto Luz e Esperança fala também que a ação é um desejo antigo. No entanto, não havia força suficiente para ser realizada. Somente em março de 2020, com o apoio de pessoas que também sentiram a necessidade de ajudar o próximo, o projeto foi encaminhado. “E graças a Deus, agora, no início da pandemia, eu tive essa graça de iniciar os trabalhos”, declara Bertoldi.
A cada dia que passa, mais visível o projeto fica e novos voluntários participam. Seja prestando serviços na cozinha ou na rua, há espaço para todos oferecerem algum tipo de ajuda. “Nós, em missão, não somos remunerados. Fazemos algo que acreditamos. Eu acredito que é muito mais eficaz do que o poder público”, comenta o fundador do projeto.
De acordo com Rodrigo Bertoldi, mais de 200 moradores em situação de rua já foram encaminhados para comunidades terapêuticas que realizam o acolhimento dessas pessoas. E para Bertoldi, é um número muito significativo. “Eu ouço relatos de pessoas que falam que trabalham há quatro anos na rua e nunca conseguiram abordar alguém para sair. Então, veja assim, é um trabalho relevante o que nós fazemos”, diz.
Em uma das visitas feitas pelo projeto Luz e Esperança debaixo da Segunda Ponte, em Vitória, a equipe foi surpreendida por um pedido incomum. Uma moradora em situação de rua queria gravar um depoimento de agradecimento pela ação realizada para ela, familiares e amigos que estavam passando por dificuldades na área urbana da cidade. “Fomos pegos de surpresa. Ela mesma pediu que fosse gravado”, conta o fundador do projeto.
Na gravação, que não será divulgada a fim de preservar a imagem daquela que se encontra em situação de vulnerabilidade social, a moradora em situação de rua agradece pelo serviço solidário do projeto Luz e Esperança e destaca que, enquanto uns estão confortáveis com a família em casa, outros ajudam quem realmente precisa. “O Rodrigo que está aqui era para estar junto com os filhos dele, mas está vindo trazer um alimento”, fala.
COMOÇÃO
Outro projeto que se mobilizou para ajudar os moradores em situação de rua foi o Missão + Ação. Assim como o Luz e Esperança, esse também foi criado em meio à pandemia da Covid-19. A coordenadora do projeto social Daniela Karthellin estava assistindo ao jornal na televisão quando ficou comovida com uma reportagem. Era sobre uma mulher catadora de materiais recicláveis que estava passando fome.
“Na hora que eu fui almoçar, fiquei muito triste e não consegui comer. Nesse dia fui para a casa de uma amiga e falei para ela que algo tocou meu coração. E que a gente podia fazer alguma coisa”- Daniela Karthellin, coordenadora do Missão + Ação
Desde então, ela, a amiga bem como o namorado da amiga, resolveram fazer a diferença. Foram ao supermercado e compraram os alimentos a serem distribuídos. Para Daniela, o que os moveu foi pensar na quantidade de pessoas que estão passando fome neste momento de crise. “Quantas pessoas não estariam com fome naquele momento, com frio e a gente no nosso conforto? Querendo ou não, a gente está com nosso trabalho garantido, com alimento e tudo mais”, expressa a coordenadora do projeto.
Com o tempo o projeto conseguiu mais voluntários, porém, não está diariamente nas ruas. Daniela ressalta que não é todo dia que a população em situação de rua se alimenta ou tem uma pessoa com quem conversar. Desse modo, é importante que novos projetos sociais e governamentais surjam para prestar apoio e solidariedade.
ATENDIMENTO
Para fazer frente à necessidade de ações emergenciais de alimentação, higienização e prevenção à disseminação da Covid-19, foram instaladas as Tendas do Bem nos bairros de Jardim da Penha e Enseada do Suá, ambos na cidade de Vitória. Trata-se de mais uma iniciativa da Rede Escola da Vida que reúne diversos serviços de atendimento aos moradores em situação de rua. De acordo as informações disponibilizadas pela Prefeitura de Vitória, entre abril a setembro de 2020 foram atendidas 209 pessoas em situação de rua e entregues 22.320 alimentações.
Além de colaborar com a alimentação, o projeto Missão + Ação também busca prestar um ato de bondade e compreensão com o próximo ao proporcionar um momento de bate-papo. “Quando estamos com eles também querem conversar com a gente, trocar uma ideia”, revela Daniela.
Daniela declara que muitas pessoas já chegaram a pedir ajuda para sair das ruas. Uma delas foi um homem que disse ser engenheiro elétrico. Os motivos que o levaram a morar na rua foram as drogas e as dívidas econômicas. Ao comprovar que era realmente formado mostrando um documento, o telefone do homem tocou. Era uma mensagem da filha. “Pai, você já perdeu tudo e está perdendo a única coisa que tem agora que é a gente”. Em seguida, o homem implorou por ajuda. “Essa história me marcou muito”, menciona a coordenadora do projeto.
Para ajudar aqueles que querem sair das ruas, Daniela explica que ela e a equipe já tentaram encaminhar essas pessoas para abrigos, contudo, não obtiveram resposta. “É muito burocrático. Alguns têm tempo para ficar 48 horas, depois tem que ir embora. Já tentamos ligar para marcar de pegar alguém em algum lugar, mas não foram”, relata.
Há 15 anos, o assistente social Mindu Zinek caminha ao lado do povo de rua. Quando morava em São Paulo fez parte da militância junto ao movimento nacional da população em situação de rua. Em Vitória compõe a pastoral do povo da rua, que procura fazer ações – a exemplo de doações de roupas, cobertas e kits de higiene – com a finalidade de minimizar os impactos da pandemia à essa população.
Zinek acredita em um mundo melhor para tantos capixabas que estão em situação de rua. Para ele, as transformações devem ser cotidianas na vida de cada um. O que pode ser feito é mudar a realidade de cada ser humano, seja no relacionamento, na caminhada ou no envolvimento com os moradores em situação de rua. E para que a mudança ocorra, é preciso participar das histórias dessas pessoas e fazer parte da rede de solidariedade como dos projetos sociais.
Créditos
Edição e reportagem: Lara Mireny
Foto em destaque: Romildo Neves
Credits:
Romildo Neves