Famílias invisíveis O dia em que fui ao casamento de mães presas em Bangu

O mês é janeiro de 2017. De olhos bem abertos, acompanho pelo noticiário as consequências da rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, com mais de 50 mortos. O segundo maior massacre em presídios em número de óbitos na história do Brasil trouxe à tona, além da crise no sistema carcerário brasileiro e a condição desumana nas cadeias, personagens invisíveis que há semanas não saíam da minha cabeça: as famílias dos detentos. Fecho os olhos e volto no tempo, quando estive no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, Rio de Janeiro, e conheci Maria.

Era dia de festa.

Arrumada com vestido rodado e laço de fita, ela dava seus pequenos passos no tapete vermelho levando um buquê e alianças. Com um sorriso tímido, mas aparentemente feliz, a menina de cabelos encaracolados atravessou até o altar, diante de todos, exercendo um tradicional papel na oficialização de um matrimônio.

Flores, violino, mais de cinco pastores, uma juíza, um coral, testemunhas.

Assistentes sociais, assessores de imprensa, representantes da Justiça, de organizações não governamentais, da Igreja, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Aos três anos de idade, Maria era dama de honra no primeiro casamento coletivo realizado pelo Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ) em um presídio feminino — na Unidade Materno Infantil (UMI), anexa à penitenciária Talavera Bruce. Sua mãe era uma das três noivas que participaram da ação realizada durante a segunda edição da Semana do Bebê e a sexta edição da Semana da Justiça pela Paz em Casa, entre novembro e dezembro de 2016. É na UMI em que ficam as mulheres de todo o estado do Rio que dão à luz seus bebês enquanto cumprem penas privativas de liberdade.

Lá, além da mãe, é onde está a mais nova irmã de Maria, de quatro meses. Já passava do meio dia quando a menina chegou na unidade. Ao entrar na sala em que funciona a biblioteca da UMI, onde as noivas – com idades entre 22 e 32 anos – se arrumavam, Maria provocou suspiros.

"Ah meu Deus, minha filha está tão linda!”,

T. exclamou, evitando chorar para não borrar a maquiagem. Enquanto isso, A. recebia os retoques finais no penteado e R., já arrumada, olhava aflita pela janela, até soltar, com brilho nos olhos: "Meu marido já está ali! Meu filho! Minha filha!".

Vestidos longos brancos e rendados, sapatos de salto, brincos perolados...

Qual colar escolher? Que lindos os buquês! Tudo que manda o figurino estava ali, graças a doações e empréstimos de diversas instituições e de funcionários da própria UMI.

Enquanto as noivas tentavam conter a ansiedade e recebiam os últimos retoques, outras mães participavam de um desfile de moda na área externa.

Já os noivos tentavam encontrar o terno, a camisa, a gravata e os calçados – também emprestados – que melhor lhes vestiam, na secretaria da unidade.

Se na sala das mulheres o nervosismo predominava, na dos rapazes a tensão parecia um pouco menor, mas transparecia nos olhares distantes. Esses sapatos não cabem? O terno está apertado. Alguém tem outro? Cadê o cinto? E agora... o que virá depois desse dia?

Foi a primeira vez que estive em um complexo penitenciário.

Para chegar à Unidade Materno Infantil, passei pelos portões do Talavera Bruce, de que me lembrava como o presídio onde uma mulher havia dado à luz em plena solitária, em 2015. Quando soube, no entanto, do trabalho realizado por UNICEF e outras instituições, quis conhecer essa realidade de perto.

No dia em que estive na unidade, havia 13 internas com seus bebês. Já na penitenciária, havia 14 detentas prestes a dar à luz.

Maria não nasceu ali,

mas há cerca de um ano ela só vê a mãe – detida grávida, acusada por tráfico de drogas – em dia de visita. Maria, aqui, é nome fictício. Pode ser Julia, Mariana, Laura... ou outro.

Ela é uma das inúmeras crianças cujas mães estão na cadeia, acusadas de crimes diversos. Ao testemunhar o fortalecimento dos laços de sua família, essa criança, aqui Maria, pode ser considerada de "sorte".

A penitenciária Talavera Bruce – que tem estampada nos portões de entrada a mensagem "Ressocializar para o futuro conquistar" – recebe as detentas grávidas de todo o estado do Rio. Após o parto, as mães vão para a UMI, onde ficam com as crianças até que elas completem entre seis meses e um ano de idade. Caso não obtenham a liberdade antes do final desse período, acontece o que chamam de "desligamento", ou seja, o bebê é levado para a família ou para um abrigo.

Se o dia em que estive lá era festivo, o que acontece quando uma mãe tem que se despedir de seu filho é o extremo oposto disso.

A cena é desoladora, muitos me contaram. Mas os impactos desse desligamento vão muito além das lágrimas envolvidas.

Consultora do UNICEF para a Primeira Infância, a psicóloga Isabel Abelson me explicou o motivo pelo qual o amor é tão essencial para o desenvolvimento do cérebro de um bebê. A fase até os seis anos, chamada de "primeira infância", é um período considerado – não só por psicólogos ou cientistas da área da subjetividade, mas também por economistas e outros pesquisadores – decisivo para o desenvolvimento de qualquer pessoa.

"Os fatores genéticos não podem ser desconsiderados, mas uma criança se constitui como sujeito também porque alguém dá sentido à sua existência, ao seu choro, às suas necessidades. O cérebro depende desses estímulos ambientais para ampliar as conexões neurais", explicou.

O que UNICEF e outros órgãos ligados à infância temem é a quebra que se dá quando há um desligamento tão cedo. Afinal, o outro que vai assumir o bebê poderá não ter vínculo algum com ele. Sem o contato social adequado, a criança não se desenvolve como deveria e pode ter afetados a memória, a criatividade, o raciocínio lógico.

Todo o desenvolvimento linguístico, cognitivo e emocional pode ser prejudicado.

Apesar de existir há mais de uma década em diversas cidades, a Semana do Bebê é realizada há somente dois anos na UMI – única unidade prisional do país a receber a ação. O objetivo do UNICEF é garantir agilidade na atenção judicial a essas mulheres e alertar para a valorização do vínculo entre a mãe e o bebê. Esse trabalho surgiu a partir de uma conversa entre o fundo das Nações Unidas e a Fundação Xuxa Meneghel, que já tinha projetos na UMI, com apoio da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (Seap). A parceria se estendeu a outros órgãos, como o Tribunal de Justiça, a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e outras redes atentas ao tema.

Durante a semana, as detentas participaram de oficinas e palestras, como a do TJRJ sobre a Lei Maria da Penha e as Regras de Bangkok – um conjunto de determinações da ONU, como assistência médica adequada e outras regras mínimas de proteção à dignidade das presidiárias. Lendo as notícias sobre a II Semana do Bebê, vi que a juíza auxiliar da presidência do TJRJ Adriana Ramos de Mello apontou que uma das opções defendidas para que as gestantes presas tenham seus direitos garantidos é a priorização de processos e aplicação de penas alternativas, uma vez que, em muitos casos, a mulher é presa por atos que não têm alta gravidade comprovada. E uma fala dela me chamou atenção:

"Os filhos das presas não podem ser tratados como se presos fossem".

Em um país cujos noticiários exibem penitenciárias em chamas e a discussão muitas vezes se limita ao jargão

"bandido bom é bandido morto",

a ação realizada por UNICEF e demais órgãos faz um esforço para mudar o rumo de crianças que, para nós, são invisíveis. Eu ainda não tinha pesquisado muito sobre essa realidade quando me vi ali, testemunhando um dia tão marcante para três rapazes: um deles, o pai de Maria. Em torno de seus 20 e poucos anos, os noivos que foram ao Talavera oficializar o matrimônio me falaram sobre os motivos para dizerem

"sim".

Pai da pequena Maria, W. contou que está ao lado de T. há cerca de cinco anos, e visita a mulher quinzenalmente.

"A ideia era casar lá fora. Ela é uma pessoa boa, que fez besteira mas agora mudou. Se eu abandoná-la será pior'’, me disse o pedreiro.

C. está com a noiva há 11 anos, e leva os três filhos (de 15 – fruto de um relacionamento que ela teve anteriormente –, 8 e 6 anos) para visitar a mãe e o bebê (de 4 meses) todo domingo.

"Trabalho das 14h30 às 23h. Deixo as crianças na escola de manhã e, à tarde, elas ficam com minha sogra. Faço papel de pai e mãe. A saudade bate",

desabafou o rapaz, cuja mulher se envolveu em uma briga e foi presa acusada de agressão. Aos 21 anos, M. era o mais novo entre os noivos.

"Achei esquisito casar aqui, mas agora temos um filho",

contou o jovem que, por morar em outra cidade e estar desempregado, via o menino de 3 meses pela segunda vez.

Tudo pronto: juíza a postos, coral de detentas cantando música gospel, uma moça ensaiava os acordes do violino. Antes de ir para a parte externa da UMI, as noivas posaram para fotos.

Vi Maria abraçar as pernas da mãe e, aos poucos, gostar de toda aquela atenção.

Ela sorria. Naquele momento, me lembrei das tantas vezes em que fui daminha, em condições tão diferentes da dela. Mesmo assim, me vi em Maria. Minha cabeça foi longe... Mas respirei fundo e voltei. Pelo menos naquela hora, o choro não era de tristeza no Talavera.

Sapatinhos brancos no tapete. A cerimônia aconteceu como manda a tradição: alianças, juras de amor, abraços e lágrimas. E Maria ali, brincando com o buquê. E as outras crianças ali também, conhecendo os irmãozinhos bebês. Foi nessa hora que a diretora da UMI, Ana Christina Faulhaber, pode me explicar de onde surgiu a ideia do casamento.

"UM DOS ÓRGÃOS PARCEIROS SUGERIU, MAS NÃO ACHEI QUE ELAS SE INTERESSARIAM. FOI UMA SURPRESA QUANDO COMENTEI E ELAS DISSERAM QUE QUERIAM. AÍ FOI CORRER PARA LIGAR E CONVENCER OS RAPAZES, REGULARIZAR DOCUMENTAÇÃO...".

Ouvir as detentas. Esse me pareceu ser um esforço de Ana e, talvez por isso, ela se dedique a iniciativas como a Semana do Bebê. Nesse dia de festa, em que foi homenageada pelas presidiárias e parecia satisfeita com o resultado, ficou um pouco mais séria para me dizer com convicção:

"É PRECISO DAR VISIBILIDADE AO PROBLEMA DO ENCARCERAMENTO DE GRÁVIDAS NO BRASIL".

Em 15 anos, entre 2000 e 2014, a população penitenciária feminina subiu de 5.601 para 37.380 – um crescimento de 567%. Lendo o relatório Infopen Mulheres, divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) no fim de 2015, descobri que essa taxa é superior ao crescimento geral da população penitenciária, que teve aumento de 119% no mesmo período. Um dos dados que mais chamam atenção é o percentual de mulheres presas pelo crime de tráfico de drogas: 58%. Nas conversas que tive com a equipe do UNICEF, soube que

grande parte das detentas estão ali ainda cumprindo pena provisória, sem julgamento,

não oferecem riscos graves à sociedade e poderiam estar cumprindo penas alternativas, em prisão domiciliar. Ainda segundo o Infopen, havia na época abordada no estudo 1.420 unidades prisionais no país, dentre as quais somente 103 eram exclusivamente femininas – enquanto 1.070 eram masculinas e 239 consideradas mistas (abrigando homens e mulheres).

Enquanto isso, órgãos como os envolvidos na Semana do Bebê vão dando pequenos, mas importantes passos. A psicóloga Isabel destacou que um dos avanços obtidos do ano passado para cá foi a parceria com o sistema judiciário e a abertura para o pensamento de que o recurso da prisão não deve ser usado de maneira indiscriminada, principalmente nos casos de mulheres grávidas.

"O UNICEF não está defendendo que as presas sejam liberadas. Elas precisam pagar pelos crimes que cometeram. Mas é necessário haver uma sentença em que seja considerada a existência de um bebê. Tem mulheres presas que nunca mais viram os filhos. Muitos crescem sem certidão de nascimento, por exemplo, e sem a guarda dos responsáveis. E isso tudo já limita as crianças de terem muitos direitos. Imagine a marca disso na vida de alguém. A gente vê uma compulsão à repetição desse ciclo. De pessoas muito pobres, que estão em completo desamparo financeiro e emocional, que repetem as histórias dos pais e das mães, que nem conheceram", concluiu Isabel.

Fim de festa.

Já casados, os noivos devolveram os vestidos e ternos emprestados. Não há lua de mel. Logo ficou evidente o fim do clima quase teatral de alegria que havia até ali. Me lembro da cena de gestantes, após assistirem ao casamento, seguindo enfileiradas de volta ao presídio. Me recordo também da frase do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao jornal O GLOBO, após as mortes em Manaus:

"Um dia, (o preso) voltará ao convívio social. Ressocializado? Não. Embrutecido. Perde, em muito, a sociedade".

Em nosso código penal, não constam pena de morte nem prisão perpétua. Um dia, todos os presos sairão. Em que condições sairão? E como estarão seus filhos? Entre tantas detentas no Brasil inteiro, imagine a quantidade de pequenos longe de suas mães. Aí me lembro de Maria, indo embora de mãos dadas com o pai. Mas e as outras crianças? Me pego pensando nos caminhos que percorrerão enquanto permanecem invisíveis.

Created By
Ana Carolina Morett e Flavio Emanuel
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Credits:

Texto: Ana Carolina Morett  /  Fotografias: Flavio Emanuel

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