Saramago Nunca Soube
Era a primeira vez que eu saía do país, e de cara foi para morar um ano inteiro fora. Eu tinha 22 anos, e na bagagem de mão, para ajudar a passar o tempo no voo de onze horas, escolhi meio que por acaso o Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago.
No voo mesmo não li nada: ele atrasou cinco horas pra sair, e eu estava tão cansada que dormi no Brasil e acordei na França. E foi lá que começou a nossa história.
"Escolhi meio que por acaso o Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago."
Minhas duas malas, com tudo o que eu tinha, não chegaram. Por conta do atraso no voo, a residência estudantil que me acolheria não estava mais aberta. Um brasileiro que conheci no avião, que confiou em mim, e em quem fui obrigada a confiar desde o primeiro instante, me abrigou na primeira noite em Paris. Me fez o jantar, me deu uma cerveja, me acalmou. Um dos anjos que aparecem quando precisamos.
No dia seguinte fui para a residência onde iria morar pelo próximo ano, na famigerada – e eu nem sabia disso – periferia norte de Paris.
"Me abrigou na primeira noite em Paris. Me fez o jantar, me deu uma cerveja, me acalmou."
Sem roupas, sem companhia, sem entender o que as pessoas falavam, ele – o Ensaio sobre a Cegueira – passou a ser meu melhor amigo. Devorava as páginas rapidamente enquanto aguardava que os longos dias do fim do verão acabassem, que as minhas aulas começassem e que alguém da companhia aérea chegasse com as minhas malas.
Numa das idas e vindas entre o meu apartamento e a porta da frente da residência, para checar se as benditas bagagens já estavam chegando, comecei a bater papo com um cara. Para esse, dei confiança demais. Percebi que não devia. Entrei no prédio, ele me seguiu, apertei o passo, corri. Ele me alcançou no corredor da residência, ainda esvaziada na última semana de férias dos estudantes.
"Entrei no prédio, ele me seguiu, apertei o passo, corri. Ele me alcançou no corredor da residência..."
Assim como acontece com muitas e muitas e muitas mulheres desse mundo todos os dias, naquele dia sofri uma agressão sexual. Nem a maior força que eu pudesse fazer poderia se contrapor à força daquele homem tão maior, tão mais forte que eu. Consegui gritar e, com o grito, uma chave virou numa das fechaduras das dezenas de portas daquele corredor. O homem, tão grande, tão forte e tão covarde, saiu correndo pelo mesmo lugar de onde veio, e da porta salvadora na qual girou a chave saiu mais um anjo que me acolheu.
No dia seguinte, o Saramago me contava a cena de estupro coletivo que acontece no hospital/presídio. Chorei, chorei de soluçar. Palavra após palavra, eu sentia que sofria aquilo também, junto com aquelas mulheres. Foi nesse momento que me dei conta do que realmente é ser mulher num mundo tão violento. Nunca vou me esquecer.
"Chorei, chorei de soluçar. Palavra após palavra, eu sentia que sofria aquilo também, junto com aquelas mulheres."
Mas, apesar de tanto pesadelo, o que mais me marcou nesse livro não foram a violência e a atrocidade. Foi a solidariedade. E, principalmente, a solidariedade entre mulheres. Mulheres que se unem, negam-se a obedecer aos pedidos de seus maridos para ficar, e caminham todas juntas ao encontro de seus estupradores. Mulheres que se unem num ritual para velar o corpo de uma companheira morta. Mulher que, ao ver seu marido transando com outra, se compadece dela, por ter consciência do que é a solidão naquele coração. Coração de mulher. Nunca tive tanta consciência do que sou, e de que somos todas mulheres.
Apesar de tanto pesadelo, minha chegada no velho mundo também foi repleta de solidariedade. A solidariedade daquele cara que eu nunca tinha visto na vida e que me convidou para dormir na casa dele e me deu de comer. Do outro cara, que nem sabia, mas, pelo simples fato de se importar em sair do quarto para ver o que estava acontecendo, me salvou de algo que poderia ter sido muito pior, me deu água com açúcar, me deixou descansar em sua casa enquanto eu retomava o fôlego. Cada pessoa que me ajudou, e cada pessoa a quem eu ajudei – solidariedade é algo contagioso! –, fez com que o ano escolar 2007-2008 fosse um dos mais intensos da minha vida.
Cada pessoa que me ajudou, e cada pessoa a quem eu ajudei – solidariedade é algo contagioso!
Saramago nunca soube, mas seu Ensaio também o fez.
Credits:
Created with images by Klovovi - "Paris" • RyanMcGuire - "corridor hallway floor" • Counselling - "woman desperate sad" • Pedro Peron - "Caroline Vigo Cogueto"