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CAPS AS DEMANDAS DE UM SISTEMA INVISÍVEL EM SANTA MARIA

Esse foi um dos relatos ouvidos durante a construção desta reportagem. Temos o intuito de apresentar, principalmente, o serviço desenvolvido nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), suas metodologias de atendimento, demandas, relação com o restante da rede de saúde mental e como se dá a relação dos usuários com esse sistema de saúde em Santa Maria.

Durante os meses de abril e maio, entre visitas e conversas, podemos conhecer o serviço de saúde mental do município, que conta com quatro centros: o CAPS II Prado Veppo, que atende pessoas com transtornos mentais graves; o CAPS Ad II Caminhos do Sol e o CAPS Ad II Cia do Recomeço, que são voltados para usuários dependentes de álcool e drogas; e o CAPSi II O Equilibrista, por onde passam crianças e adolescentes com transtornos psíquicos.

A realização das visitas aos locais, além de contribuírem para o esclarecimento de cada unidade, também serviram para que buscássemos respostas das demandas mencionadas pelas equipes dos CAPS e pelos próprios usuários. Junto com as unidades, conhecemos o funcionamento do centro de internação Paulo Guedes, localizado no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). Também ouvimos profissionais do setor e usuários dos serviços psicossociais e participamos da Pré-Conferência de Saúde Mental, que ocorreu na Universidade Franciscana (UFN), com acadêmicos e professores da área de saúde que atuam na rede.

Durante esses dois meses, as visitas aos CAPS, à unidade Paulo Guedes e a entrevista com a Coordenadora de Saúde Mental, Claudia Pinto, ocorreram por intermédio do Núcleo de Educação Permanente em Saúde (NEPeS). A primeira foi realizada no início do mês de abril e a partir daí mergulhamos nos Centros de Atenção Psicossocial.

Nesse período, podemos ver a dedicação dos profissionais em manter as atividades e oficinas, mesmo trabalhando com a equipe mínima reduzida. Logo nas primeiras visitas, ouvimos relatos das equipes das unidades sobre a carência de profissionais e o inchamento da rede que não consegue suprir a grande demanda de usuários. Evidenciamos a falta de estrutura e investimento nesses serviços por parte dos órgãos públicos.

Encontramos, ainda, a dificuldade de obtenção de respostas por parte da Coordenadoria de Saúde Mental e Secretaria de Saúde de Santa Maria. Entre os questionamentos sem respostas, está os valores dos aluguéis pagos pelos imóveis, que custam em média R$ 7,5 mil/mês, para cada unidade.

Os CAPS, que se localizam na região central da cidade, também trocam de endereço constantemente, devido as condições das residências. As alterações afetam, principalmente, os usuários das unidades Ad (álcool e drogas,) que precisam se adaptar as mudanças. Isso porque, esses centros atuam por meio de "territórios", os quais estabelecem para onde cada usuário deve ir, a partir do local em que moram.

É importante saber que os centros constituem-se dentro da chamada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), uma das estratégias desenvolvidas pela Política Nacional de Saúde Mental. A estrutura faz parte de uma implantação realizada no Sistema Único de Saúde, com o objetivo de atender, nos diferentes graus de complexidade, pessoas que demandam atendimentos voltados à saúde mental. Em Santa Maria a prefeitura é responsável por essas unidades.

Além dos CAPS, a rede também é formada por outros serviços.

CAPS II - Prado Veppo - “De Perto Ninguém É Normal”

O CAPS II Prado Veppo, localizado na avenida Hélvio Basso, foi a primeira unidade a ser visitada, na tarde do dia 02 de abril. Ali são atendidas pessoas a partir dos 18 anos, com transtornos mentais graves e de alta complexidade. Após o acolhimento, que é um processo de reconhecimento e uma primeira conversa com os pacientes, é feito um plano terapêutico específico para cada usuário, que inclui desde o atendimento psiquiátrico até a participação em grupos terapêuticos, como as oficinas de artesanato, culinária, jogos e esportes, além da participação num grupo de rádio.

No dia em que realizamos a visita no Prado Veppo, fomos recebidos pela residente de Assistência Social Flávia Vieira. Nesse dia, havia uma reunião com os usuários que participam do programa de rádio “De Perto Ninguém É Normal”, desenvolvido por eles, gravado e transmitido pela Rádio Universidade, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Fomos convidados pela residente a participar da reunião, para que tivéssemos contato também com os usuários, que nos contaram suas percepções e atividades dentro da unidade.

O Prado Veppo é a única unidade onde os usuários podem passar o dia todo no local. Nesse caso, são recebidos pacientes intensivos, aqueles que são considerados os casos mais graves. Esses pacientes são acompanhados pelos “profissionais de referência” (profissional responsável por cada usuário), recebem medicamentos, participam dos grupos e recebem até três refeições por dia.

Ao participar da reunião, conhecemos alguns usuários que nos relataram a importância da participação da oficina de rádio, que conta com 23 pessoas e está há mais de 15 anos em atividade. Uma das participantes, que escreve poesias para o programa, relata que a partir dessa atividade ela se sentiu capaz e reconhecida. “Eu sempre tive vontade de trabalhar, pois meu ex-marido tinha uma estação de rádio, mas ele sempre me dizia que meu lugar era no hospício e eu passei a aceitar que esse era o meu lugar mesmo”, conta a usuária do CAPS, que morava a 200 quilômetros de Santa Maria e, durante a visita, também nos recitou a poesia que escreveu. Ela também faz parte de um conselho formado pelos usuários, que reivindicam suas demandas e falam em nome de outros usuários à Secretaria de Saúde do município.

O Prado Veppo é o único CAPS onde há um movimento dos usuários que buscam autonomia e a reinserção em sociedade. No que se refere ao empoderamento dos usuários, os pacientes da unidade fazem utilização do guia da Gestão Autônomo da Medicação, conhecido como Livro GAM, que permite que eles se sintam mais críticos em relação ao seu tratamento.

Após o término da reunião, conhecemos as instalações do Prado Veppo, um ambiente grande, com salas de atendimento, jogos e oficinas, mas que se torna pequeno para o grande número de pessoas que circulam por ali diariamente. Quem nos apresentou, foi o Ronaldo Aguiar, que também conversou com a gente.

Flávia, residente em Assistência Social conta que muito usuários passam o dia todo no CAPS, sem desenvolver nenhuma atividade terapêutica. Muitos vão para a unidade por consider ali uma segunda casa, mas alguns acabam indo para o CAPS como forma de dar um “descanso à família”. Durante a estadia na unidade, eles fazem refeições, interagem entre si, mas não há nenhum espaço adequado, por isso a necessidade de um centro de convivência, como é colocado por Flávia. “O serviço está inchado em todas as estruturas, por isso a busca por espaço e parcerias para alocar as atividades”, conta a residente de Assistência Social. Segundo Flávia, há cerca de 600 usuários no CAPS, que não tem espaço para outros pacientes, que acabam ficando na lista de espera.

CAPS Ad II - Caminhos do Sol - A enfermeira também é oficineira

O centro Caminhos do Sol contempla o CAPS Ad, ou seja, voltado a atendimentos de pessoas com transtornos decorrentes do uso e dependência de drogas. Localizado na rua Euclides da Cunha, ainda atende por livre demanda. Entretanto, conforme Ieda Lopes, psicóloga que atua na unidade, a Caminhos do Sol já se encontra em situação delicada. “Já estamos agendando os primeiros atendimentos, devido a grande demanda que temos”. A unidade foi visitada no dia 03 de maio, um dia após o encontro no Prado Veppo.

Caminhos do Sol foi o primeiro ad da cidade. Após, surgiu o Cia do Recomeço, que tinha o objetivo de atender somente adolescentes usuários de crack e atuava como uma unidade dentro do primeiro CAPS.

Assim como as outras modalidades do serviço, Caminhos do Sol presta auxílio aos usuários por meio do Plano Terapêutico Singular (PTS), no qual são dispostas as oficinas, dias e horários de atividades. Nos atendimentos diurnos são oferecidos também café e almoço, sendo a refeição do meio-dia fornecida de forma terceirizada. Os lanches são preparados pela própria equipe de profissionais, pois não há merendeira.

Inclusive, o Caminhos do Sol atua com equipe incompleta, ainda que seja a que trabalha com maior número, conforme Ieda. Os profissionais também relatam que há dificuldades também na obtenção de materiais para as oficinas. Conforme relatos, é necessário buscar por outros meios, como brechó, para adquirir objetos e utensílios. “Nunca foi possível fazer encaminhamento de recursos para as oficinas, para material. Eles [prefeitura] dizem que é difícil para fazer licitação”, conta Ieda.

A equipe sinaliza a importância das atividades e o uso de ferramentas para o trabalho cognitivo. Segundo eles, por meio de trabalhos recreativos, é possível controlar o desejo do uso de substâncias pelos usuários. Dentre as atividades desenvolvidas está a jardinagem.

No dia em que foi realizada a visita ao Caminhos do Sol, dois usuários do serviço cuidavam da terra. Um dos senhores, que frequenta o serviços há oito anos, ao ser questionado se gostava do lugar e das atividades que desenvolvia, respondeu "a gente está sempre aprendendo”.

Lúcia Amabile, enfermeira que também está a frente de diferentes oficinas, frisa a importância do trabalho realizado pelo CAPS. Lúcia conta que há casos em que o usuário chega à unidade para aguardar internação, mas ao passar por um período no centro consegue se desintoxicar. A supervalorização de cada pequena ação desenvolvida pelos usuários é um dos pontos essenciais no processo. “Eles pensam em outras coisas fora do uso das substâncias e têm noção de que podem produzir, serem capazes”, considera a enfermeira.

Ainda que os atendimentos sejam apenas diurnos, os usuários encontram nesses locais um porto seguro, já que, de acordo com os profissionais, muitos chegam em estado de vulnerabilidade, abandonados pela família e em situação de rua. Para aqueles que são amparados por familiares, o Caminhos do Sol também oferece grupos terapêuticos familiares.

Ieda ressaltou, durante a visita, a importância da população conhecer o seu papel no controle social, ou seja, do controle que a sociedade pode ter sobre as ações do Estado. A psicóloga destacou que o Conselho Municipal de Saúde é um órgão deliberativo e um espaço de fala da comunidade. “A gente ainda sente que as pessoas até desconhecem onde está o controle social. Estamos estimulando para que os conselhos locais sejam estruturados esse ano, porque vamos estar mais perto das unidades de saúde, da população”, declarou.

CAPS Ad II - CIA do Recomeço - A equipe mínima reduzida

A visita ao CAPS Cia do Recomeço, ocorreu no dia 04 de abril, onde fomos recebidos pela enfermeira Niara Cabral. Localizado na rua General Neto, ele atende pessoas com transtornos relacionados ao uso de drogas e álcool. Por ali passam pacientes a partir de 12 anos e, para o atendimento, os pacientes não precisam, necessariamente, de encaminhamento, pois podem acessar o sistema por conta própria. Entre os casos mais atendidos está o uso excessivo de cocaína e crack, sobretudo por homens jovens, conforme relata Niara.

O trabalho também se dá a partir do que eles chamam de “território”, onde cada CAPS Ad atende diferentes regiões de Santa Maria. O território está relacionado às unidades de atenção básicas localizadas nos bairros, que levam em conta onde o paciente mora. Dessa forma, ele acaba sendo encaminhado para tratamento na unidade correspondente. A partir da localização do território, o usuário do CAPS passa por um “acolhimento”, onde serão definidas as demandas de cada paciente, para que possam ser encaminhados aos grupos terapêuticos e para os demais procedimentos, como medicação e, em último caso, a internação.

Niara conta que o CAPS faz o possível para que não haja internações. “Geralmente as pessoas acham que a internação é o melhor recurso, mas, na verdade, só serve para desintoxicar, depois eles acabam voltando para a mesma rotina do uso de drogas e álcool”. Em relato, a enfermeira conta que o CAPS também têm como prioridade trazer os usuários para uma vida digna, os inserindo em sociedade e dando a devida atenção que essas pessoas precisam. “Muitos usuários dizem que o CAPS é a segunda casa deles, pois aqui eles tem esperança de que nem tudo está perdido, acabado”, conclui Niara.

Ainda questionada sobre as internações, a enfermeira conta que o CAPS tem parceria com as unidades de internação de Nova Palma, São Francisco, Casa de Saúde, onde os usuários podem permanecer por, no máximo, 21 dias. Caso esse período não resolva, eles devem ser encaminhados para unidades terapêuticas. Se houver internação compulsória, há espaço para escuta com profissionais, que tentam trazer o dependente para uma conversa e, se ele se recusar, há uma avaliação psiquiátrica para a internação compulsória, através do Ministério Público.

Sobre as demandas dentro do CAPS, o cenário mais uma vez se repete: a falta de profissionais. No dia da visita, encontramos apenas três profissionais em atividade pela parte da manhã. Niara conta que aquela manhã estava calma, devido a uma reunião no Núcleo de Educação Permanente em Saúde (NEPeS), onde o Ministério da Saúde teria vindo para uma avaliação, e os residentes do Cia do Recomeço estavam lá.

A enfermeira também reclama da falta de terapeutas ocupacionais, essenciais para o tratamento dos pacientes. Devido às parcerias com os cursos de Terapia Ocupacional da UFSM e da Universidade Franciscana (UFN), eles conseguem minimizar a carência de profissionais. A demanda por psicólogos também foi mencionada, já que, na data da visita, dois estavam em licença.

Como toda essa dificuldade de pessoal, as oficinas também acabam por ser reduzidas, pois não há oficineiros para que elas ocorram. O CAPS Cia do Recomeço conta com a parceria do Projeto Ítaca, de estudantes da UFSM, que atua na redução de danos e desenvolve atividades junto aos usuários. “Temos oficina de horta, atividade física, onde levamos eles para as praças e [eles] jogam basquete, futebol. Tinha grafite, que eles gostavam bastante, mas parou pela falta de material”, conta Niara. Todas essas demandas são encaminhadas à coordenadoria de saúde da cidade, mas poucas coisas são resolvidas.

Ao ser questionada de que forma essa falta de material afeta a unidade, Niara responde: “Afeta total. Não podem fazer os procedimentos. A falta de carro pra saúde mental também afeta, pois não podemos fazer as visitas. É um carro para todos, que se dividem em escala”. A Secretaria de Saúde de Santa Maria disponibiliza apenas um carro para ser usado pelos quatro CAPS na cidade, o que gera transtornos nas visitas de acolhimento. Também é relatado que muitas vezes há carro, mas não há motorista, ou há motorista e não há carro.

A casa onde fica localizado o CAPS Cia do Recomeço é ampla como as demais, contando com salas de atendimento, jogos, terapias, espaço para descanso e cozinha própria para os usuários. Em conversa, fica nítido que a principal demanda é a falta de profissionais, e os que lá já atuam fazem o máximo para atender os cerca de 1800 pacientes, entre frequentadores assíduos e esporádicos. O Cia do Recomeço é a unidade que está com o número de equipe mínima mais reduzida. “ Todos os profissionais fazem de tudo um pouco”, conta a enfermeira.

CAPSi II - O Equilibrista - A articulação faz a eficiência

A unidade O Equilibrista, localizado na esquina da rua Minas Gerais com Gaspar Martins, foi o último CAPS a receber a nossa visita. O atendimento desenvolvido lá, é voltado para crianças e adolescentes até os 17 anos com transtornos psíquicos, como autismo, neuroses graves, psicoses e todos aqueles que, devido a sua condição psíquica, estão impossibilitados de estabelecer relações sociais. Em casos graves, os usuários podem ter acompanhamento do CAPSi até os 24 anos. Além disso, a unidade também atende usuários de drogas com menos de 12 anos.

Na tarde em que visitamos o CAPSi, fomos recebidos pela técnica em saúde mental, Viviane Costa, que nos apresentou o espaço. Viviane conta que, assim como nos demais CAPS, a unidade faz um processo de acolhimento de toda criança e adolescente que chega ao serviço, seja por encaminhamento ou de forma espontânea, além de atendimentos individuais e o desenvolvimento das atividades em grupos terapêuticos. Por atender crianças e adolescentes, o CAPSi conta com uma articulação em rede, que tem como parceria o Ministério Público, Conselhos Tutelares, além das unidades de saúde. Essa rede serve como amparo para que o cuidado com essas crianças seja ainda maior.

Pelo CAPSi, em determinados dias, são atendidas mais de 50 crianças e adolescentes, como conta Viviane, que diz ter uma estimativa de 600 usuários no serviço. Ainda, segundo a técnica, a unidade é a equipe que está mais completa, dentro do número estimado pela portaria nº 336. No O Equilibrista, são feitos apenas consultas e desenvolvidas as atividades nos grupos terapêuticos. Durante a espera para ser atendido, as crianças podem ficar pelos diversos espaços da casa, como sala com livros, espaço para desenhar, sala de jogos e brinquedos, além de um grande espaço externo para que eles possam conviver e desenvolver as relações sociais.

O CAPSi tem como objetivo oferecer apoio e a busca da autonomia e independência das crianças e adolescentes. Segundo Viviane, é necessário também um acompanhamento familiar para integrar a família ao processo terapêutico, para que ela assuma o seu papel junto ao tratamento e na reestruturação psicossocial das crianças. Na unidade também existe um grupo direcionado apenas à família.

Em casos agudos, como surtos, intoxicação ou abstinência, é necessário o encaminhamento a unidades de internação. Em Santa Maria, Madre Madalena é o setor responsável pelo recebimento desses casos no Hospital Casa de Saúde. O Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) também presta serviço neste âmbito por meio da unidade Paulo Guedes.

Unidade Paulo Guedes - A família também faz parte do tratamento

O fluxo de atendimento do HUSM funciona a nível federal, pactuado com outros níveis de atenção. Em outras palavras, o hospital recebe encaminhamentos de unidades básicas e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), além de casos críticos que chegam por meio do Pronto Socorro.

Neste contexto de trabalho, a unidade Paulo Guedes presta atendimento voltado a todos os casos agudos relacionados à saúde mental. Surtos, intoxicação e abstinência estão entre os tipos de casos recebidos.

A gerente de atenção à saúde do HUSM, Soeli Guerra, explicou que o paciente que chega ao hospital é estabilizado e encaminhado ao leito. Atualmente, de acordo com ela, a unidade fornece 30 lugares, dividido em enfermarias por perfil de pacientes. “Ele pode permanecer, inicialmente, por 21 dias. E depois ele pode ser prorrogado, de acordo com a necessidade. Nesse período, busca-se trabalhar todas as questões que o envolvem: social, familiar, abandono, outros complicadores daquele caso”, esclarece. Após, a pessoa pode ser encaminhada ao CAPS ou colônias terapêuticas.

Nesse processo, uma equipe multiprofissional atende individualmente cada pessoa. Esse quadro é formado por médicos, em tempo integral, residentes da área médica, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e psicólogos. Soeli frisa que os acompanhamentos realizados junto aos pacientes vão além da administração de medicamentos e buscam auxiliar na resolução de outras questões referentes ao contexto social do paciente.

Diferente de patologias disfuncionais, a saúde mental requer uma complexa estrutura de apoio. Segundo Soeli, essa pode ser considerada a rede mais dinâmica que precisa existir, pois está ligada a diferentes âmbitos da vida de qualquer sujeito. “Ela não libera ninguém. Ninguém está livre de estar em um processo” relacionado à saúde mental, lembra a gerente de atenção à saúde.

Dentro dessa gama de apoio estão incluídos não apenas organizações como CAPS e colônias terapêuticas, por exemplo, mas também grupos de ajuda, associações e a própria família. Quando se trata dessas questões, deve-se pensar que não há intervalos, mas um acompanhamento contínuo. Soeli aponta para a necessidade de um envolvimento maior da sociedade no que diz respeito à saúde mental. “Precisamos criar uma consciência de que quando alguém adoece dentro da minha casa, ele passa a ser responsabilidade do sistema e minha também”.

Quando alguém é internado na unidade Paulo Guedes, trabalhos também são realizados junto às famílias. Essas ações também contribuem, de acordo com a gerente, para que a família possa refletir e ajudar o paciente e, dessa forma, reforçar a rede. Já na unidade, diferentes abordagens são realizadas pela equipe, desde visitas, passeios, grupos de atividades, tudo auxilia os pacientes.

Em Santa Maria, Soeli avalia que o sistema possui serviços de referência e com fluxos organizados, porém, o avanço dos problemas relacionados ao comprometimento da saúde mental das pessoas fragiliza a rede. A reincidência também é outro fator apontado pela gerente de atenção à saúde. Para ela, o retorno de pacientes ao atendimento se deve à falta de adesão ao tratamento após a saída da unidade. “A doença mental é uma doença que afeta o indivíduo como qualquer outro. Ela tem sequelas. Se parar com o tratamento, vai reincidir”.

Para Soeli, olhar para as causas e buscar interferir quando se percebe qualquer manifestação dentro das relações pessoais são ações importantes que contribuem para a redução dos casos. “Saúde mental é indiscriminada. Você não imagina que quem que faz três refeições por dia tem o direito de surtar; Que quem frequenta uma universidade financiada pela família ou pelo governo tivesse necessidade de usar drogas”.

Conhecemos um usuário do CAPS Cia do Recomeço e que ficou internado na Paulo Guedes em 2014. Devido ao receio de julgamentos, ele preferiu não se identificar. A busca pelo serviço de saúde teve início com uma internação na unidade. “O pessoal da Paulo Guedes é bem diferente de mim, da minha situação. Porque lá são doentes mentais. Fiquei dois dias, tomava medicação muito forte. Eu estava profundamente nas drogas”, conta o usuário. Ele relata que o início no mundo das drogas se deu durante o seu trabalho, como ferroviário. “Por um cruzamento de linha, um colega meu, que já era dependente químico, me ofereceu cocaína e eu comecei a usar”. O consumo de drogas, somado com o uso de bebidas alcoólicas, fez com que ele saísse do emprego e entrasse em estado de depressão profunda.

Atrás de respostas...

Após as visitas realizadas aos CAPS, na unidade Paulo Guedes, conversas com profissionais e usuários e a coleta de todas as demandas dentro do serviço de saúde mental da cidade, fomos atrás de respostas. Entramos em contato novamente com o NEPeS, para que pudéssemos agendar uma entrevista com a coordenadora de saúde mental do município. Durante esses contatos com o NEPeS, nos foi repassado um formulário, que preenchemos com nossos nomes e os objetivos da entrevista.

O encontro ocorreu no dia 15 de maio, na Secretaria de Saúde de Santa Maria. Após esperarmos cerca 30 minutos, a coordenadora de saúde mental, Claudia Pinto, nos recebeu. Na sala, além da coordenadora, estavam outras três funcionárias, que apenas ouviram a conversa. Como procedimento, para que pudéssemos registrar as conversas, assim como nas outras entrevistas, ligamos o gravador. Claudia nos questionou se a entrevista estava sendo gravada, após o sinal positivo, a coordenadora pediu para que não registrássemos a conversa. Após desligarmos o gravador, passamos a anotar o que ela falava, e novamente, Claudia interviu, pedindo para que também não anotássemos. A partir desse momento,a entrevista, de cerca de uma hora, se deu através de escuta e observação.

Durante a conversa, questionamos Claudia, principalmente, sobre as demandas a respeito das equipes mínimas dos CAPS, que estavam reduzidas. A coordenadora nos contou que um concurso público já havia sido feito, e que esses profissionais já estariam sendo remanejados para as unidades. A respeito da transparência do uso de recursos para a saúde mental, Claudia nos mostrou um documento de setembro de 2017 e relata que as unidades tiveram acesso a esses valores.

Em vários momentos, Cláudia não soube responder aos nossos questionamentos. Entre eles, o motivo pelo qual as casas onde se localizam os CAPS são alugadas ao invés de propriedades da prefeitura. Durante a conversa, a coordenadora nos apresentou um relatório referente ao mês de setembro de 2017, com o gastos da saúde mental na cidade. Ao ler o documento, um dado nos chamou atenção, os valores dos aluguéis das unidades. A Prefeitura de Santa Maria paga, em média, R$ 7,5 mil por mês para cada imóvel do CAPS, totalizando cerca de R$ 30 mil. Ao realizarmos uma busca em seis sites imobiliários da cidade, os valores de locação encontrados para casas do mesmo padrão nas imediações que abrigam os CAPS, não passaram de R$ 3,5 mil. Os únicos imóveis que alcançaram valores na mesma média de preço foram espaços comerciais, como lojas e pavilhões, com espaço entre 200m² e 300m², localizados na região Centro e Oeste da cidade.

Durante a entrevista, a coordenadora tomou nota do que conversamos, para que em seguida nos enviasse um e-mail com os questionamentos tratados na entrevista. Após sairmos da Secretaria, enviamos uma mensagem para Claudia, com os pontos abordados. Após uma semana, retornamos o e-mail, mas não obtivemos respostas. O processo de contato após a entrevista durou 15 dias. Em uma última ligação, feita no dia 30 de maio, foi dito que Claudia estaria de férias e que retornaria apenas no dia sete de junho. Até o fechamento dessa reportagem, a coordenadora não nos retornou.

No início do mês de junho, tentamos contato com a Secretária de Saúde do município, Liliane Mello Duarte. Deixamos nosso contato para que fosse retornado, após o pedido ser avaliado pela secretária. No dia seguinte recebemos uma mensagem, via WhatsApp, do Chefe de Gabinete de Saúde, Luã Balim, solicitando o que seria abordado em entrevista. Até o fechamento da reportagem, também não houve retorno por parte da Secretaria de Saúde de Santa Maria.

Os meses de conversas com especialistas, profissionais e usuários dos CAPS permitiram um entendimento mais profundo, ainda que inicial, sobre esse serviço. Assim como outros atendimentos dentro da rede e da saúde de modo geral, os Centros de Atenção Psicossocial demandam por melhores estruturas, reforço nas equipes de trabalho e investimentos em novas unidades.

Desde 2002, quando foi publicada a portaria nº 336, os serviços prestados pelos CAPS devem seguir as normas dispostas no documento, respeitando o modelo que determina estrutura de equipes e capacidade máxima de usuários recebidos. O estabelecimento dos centros também é determinado a partir da modalidade de serviço e da abrangência populacional. Nesse contexto é determinada a fixação do CAPS III em municípios com uma população acima de 200 mil habitantes. Essas unidades, entre outros serviços, prestaria atendimento ambulatorial de atenção contínua, durante 24 horas diariamente, incluindo feriados e finais de semana. Conforme dados da estimativa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, Santa Maria conta com uma população superior a 278 mil habitantes. Entretanto, a cidade conta apenas com CAPS na modalidade II.

O Psicanalista, Volnei Dassoler, aponta que a transposição do que se tem em documentos, portarias e políticas para o cotidiano dos serviços nem sempre é fácil, pois está ligada a outros fatores que variam entre os locais. “Deveria ser estimulado a criação e invenção de formatos de trabalho conforme a realidade da cidade e das demandas. As equipes precisam se autorizar a criar dispositivos de cuidados que não estão previstos nas portarias, mas que podem funcionar melhor, pois existem realidades distintas que as políticas não contemplam. Santa Maria precisa ampliar e diversificar os serviços de atendimento em saúde mental. Os CAPS se constituem como a principal estrutura de cuidado em saúde mental, entretanto, é fundamental que se ofereçam outras alternativas com outros formatos institucionais além de práticas abertas no cotidiano da cidade em articulação com a rede”, frisa.

O período de produção da reportagem nos apresentou a dedicação por parte dos profissionais que atuam nessas unidades e os obstáculos enfrentados. Inclusive, a construção da reportagem se tornou difícil, devido aos vários percalços que encontramos no caminho, desde o trâmite para conseguir visitar os CAPS até a confirmação de dados. A dificuldade veio, principalmente, da Coordenadoria de Saúde Mental da cidade.

Em um dos momentos, após as conversas e as estimativas de números de funcionários e de usuários, retornamos às unidades. Durante cinco dias, entramos em contato por telefone com os centros, para confirmar o atual cenário em que se encontram as unidades. Em uma das ligações, foi respondido que esses dados não poderiam ser divulgados por conta da atual gestão da coordenadoria, pois havia receio por parte dos profissionais dos CAPS de sofrerem represálias, caso esses números fossem expostos.

A saúde mental é uma pauta de interesse público, que deve ser conhecida e discutida. Os CAPS, como um desses serviços, atua na inclusão de pessoas que são marginalizadas pela sociedade e que sofrem com a exclusão. Os centros trabalham com os usuários o reconhecimento de que problemas psíquicos não inviabilizam a condição humana. Os CAPS são a amostra de que o tratamento psicossocial vai além dos remédios, mas de uma fala, um espaço de convívio, sem julgamentos ou repreensões. Esses centros, muitas vezes, passam despercebidos pela população da cidade, já que o serviço só é procurado em casos nos quais a pessoa precisa de atendimento.

** Dois dias após a publicação da reportagem para avaliação da banca, a Coordenadora de Saúde Mental de Santa Maria, Claudia Pinto, retornou os e-mails, no dia 14 de junho de 2018. O conteúdo recebido, não nos trouxe as devidas respostas do que foi abordado na reportagem.

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