O garimpo de cristal de quartzo movimentou a Chapada dos Veadeiros do início à metade do século XX. Com a queda do quartzo natural, muitos deixaram os garimpos. Aqueles que ficaram se perpetuaram pelas corrutelas, vilas garimpeiras, e continuaram garimpando. Nossa pesquisa buscou conhecer mais sobre esse povo garimpeiro, através de seus saberes e técnicas. Nessa busca encontramos Seu Dedé, um antigo garimpeiro, filho de garimpeiros, raizeiro, músico, contador de histórias e, atualmente, guia turístico.
“Por aqui tudo a gente andava caçando cristal, com ferramenta nas costas, uma vasilha de água e uma matulinha”.
“O garimpo é assim, tem lugar que ele dá cristal na baixada, noutro lugar ele dá na serra, em cima”.
“Ó o garimpo ó, o tamanho que furava, tá vendo, ó o buracão. Já criou até madeira dentro, de tão velho. Isso aqui tem mais ou menos uns trinta anos que furavam”.
“Pra minério nenhum você pode ter olho grande. Nem cristal, nem ouro. Você pode tá na maior jazida, se a pessoa chega lá com o olho grande, some. O cristal some, vai embora, some na hora, você não vê mais o cristal. Cristal não gosta muito de ozura”.
Nascido na década de 1950, à beira da cachoeira do Vale da Lua, Seu Dedé garimpa desde os doze anos de idade, aprendendo principalmente com sua mãe a arte de garimpar. Vivenciou a criação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, que proibiu a extração mineral e transformou o modo de vida local.
“Quando uma pessoa tirava cristal, uma pedra muito grande dava o nome de bamburro. Bamburro, conforme o nome popular é ficar rico”
“Ficar encantado acontece porque os cristais são tão bonitos, tão bonito, que eles ficavam tudo maravilhado com o cristal, que ficava com dó de vender. Quando o cristal era bonito, bem arrumado, bem ajeitado, ficava encantado. Eu mesmo tinha cristal que eu ficava com dó quando eu tirava”.
“Tirava lasca do garimpo pra levar pra casa, chegava lá a gente não tinha nem condição de comprar um lampião, aí pegava fazia com rolo e cera de abelha. Aí bota o candieiro pregado no pau, e vai fazendo a lasca, vendo se tinha defeito na luz. Batendo, olhava, se tinha um defeito nós tirava”.
“E aqui tem que concentrar, pra não acertar o dedo. Já perdi a unha, já sangrei a mão. Mas dói, só que não é remoso não. A gente ficava fazendo lasca. Trabalho custoso”.
Com seus 63 anos, Seu Dedé nos contou a história do garimpo, sobre como caçar veios de cristal e andar pelos morros seguindo pelas trilhas de antigos garimpeiros. Também nos ensinou sobre o cristal, suas formas, cores e ações. Com Seu Dedé aprendemos que os cristais se movem pelo chão, somem, enganam, matam. O cristal é mais do que um minério: é um agente que se relaciona com os garimpeiros.
“Eu ia com a enxada, “arranca esse remédio aí logo”, ela [mãe] falou para mim, “a senhora não falou pra que que serve, não falou o nome, vou arranca não! Aí ela falou daquela planta, falava o nome, pra que ele servia, aí eu arrancava”.
“Quando vivia o negro, nós, cortava as pessoas na taca, cortada muito de taca, batia muito, aí as pessoas ficavam muito lampiada de taca, aí ficava minando sangue. Aí pegava a negra-mina (planta medicinal), batia ela e levava no corpo das pessoas pra poder desinflamar”.
“A gente foi aprendendo, botando na cabeça que tem que aprender a fazer remédio”
“Essa embira de umburuçu que trançava corda, e usava pra amarrar, que não tinha prego, os telhados”.
Este ensaio é parte do material visual produzido ao longo do ano de 2019, resultado da pesquisa colaborativa entre a graduada em antropologia Júlia Tossin e o graduando em audiovisual José Procópio. Nele, buscamos apresentar parte do trabalho de garimpeiros, passando da busca à lapidação dos cristais. As legendas são transcrições de conversas gravadas durante caminhadas que fizemos com a companhia de Seu Dedé. Mais do que explicações, os trechos selecionados visam transpor os espectadores do ensaio para esse lugar de aprendizagem vivenciado por nós, tentando aproximá-los ao máximo da nossa própria experiência.
“Tem a trança pra fazer a peia pra circular no cavalo, ela é chata pra não machucar, essa aqui já machuca por que é redonda”.
“A gente não precisa mexer mais com garimpo, tamos trabalhando só com a natureza mesmo, com as coisas mesmo para preservar, né. Inclusive a gente trabalha em cima de garimpo assim, e hoje eu fico me lembrando”.
“Hoje diferenciou tanto, porque a gente vivia sofrendo, cavando chão. Nós tava fazendo teste, né, como fez calo na mão. Pois é, então não era fácil. Cavar a terra, para tirar a terra, para poder descobrir onde que está o cristal. Hoje não, hoje a roça nossa é o turista. A roça, o garimpo, né”.
Júlia Tossin Noleto
Antropóloga, formada pelo Departamento de Antropologia - UnB. Realizou pesquisas com temáticas relativas a Povos e Comunidades Tradicionais, tecnicidade, saberes tradicionais, território e territorialidade, paisagens antrópicas, unidades de conservação, áreas protegidas e ecologia política.
José A. Procópio
Graduando em audiovisual pela Faculdade de Comunicação - UnB. Participou de trabalhos audiovisuais com temáticas relativas à Povos e Comunidades Tradicionais, Povos Indígenas da Amazônia e políticas públicas. Realiza pesquisa com temas como documentário, documentário participativo e etnográfico, relação de alteridade dentro do documentário.