Uma caminhada vai revelando uma vegetação espaçada, de árvores não muito altas...
Cagaiteiras, baruzeiros, cajuzinhos-do-cerrado e pequizeiros emolduram o trajeto…
A excitação da descoberta se une à sensação de liberdade.
E, talvez, esses sentimentos é que guiem para o fim da trilha ‘Um Pé + Que Pequi’, onde um jatobá de 500 anos impera.
É provável que ele tenha nos atraído pra cá”, fala Sandro.
A trilha ‘Um Pé + Que Pequi’ fica dentro da propriedade de Sandro Raphael Borges e Iasminy Berquó.
O casal, nascido em Goiânia, comprou o Sítio Boca do Mato há sete anos em busca de uma filosofia de vida que alia família, natureza e fonte de renda.
Situado no município de Mambaí, próximo à junção dos estados de Goiás, Minas Gerais e Bahia, o sítio virou casa do casal e seus dois filhos, que já nasceram aprendendo a valorizar o meio ambiente.
Mambaí e seu entorno são conhecidos por suas belezas naturais. Cachoeiras, cavernas e cânions fazem parte do cenário. O encanto pelo novo lar levou o casal a percorrer a localidade. Foi quando descobriu que a riqueza da paisagem encobria problemas sociais.
“Estamos em um cinturão de pobreza”, relata Sandro.
A região está inserida no cerrado, que é a savana mais rica do mundo, detendo 5% de toda a biodiversidade do planeta.
Como os frutos desse bioma não são explorados pela agricultura convencional, a retirada dos insumos é feita por extrativistas da agricultura familiar. Eles coletam os frutos no mato, carregam até suas casas e os processam artesanalmente.
O pequi, por exemplo, é “roletado” com faca.
Quando Sandro e Iasminy conheceram essa realidade, tiveram a certeza de que queriam contribuir com a comunidade. Como já produziam uma pasta de pequi que tinha despertado interesse em uma cooperativa, negociaram a compra da matéria-prima com as famílias da região.
“Eles vendiam por um preço muito baixo. Aumentamos o valor e oferecemos uma relação econômica justa.”
Sandro foi criado na roça até os 5 anos, e como todo “goiano do pé rachado”, sempre gostou muito de pequi.
Fruta amarela com sabor característico, está presente em pratos típicos da culinária goiana, como arroz com pequi e galinha caipira com pequi.
Já Iasminy cresceu explorando com sua mãe o entorno da casa dos pais. Faziam caminhadas onde se deliciavam com frutas direto dos pés.
O pequi era dado a ela pelo pai, que raspava a polpa com garfo.
Além da relação com o pequi desde a infância, o impulso para utilizar o sítio como um local de desenvolvimento de tecnologias para a utilização dos insumos do cerrado aconteceu quando Sandro e Iasminy perceberam a importância da safra do pequi para as comunidades extrativistas.
É ela quem define o período de compras de carro, casamentos e reformas de casa.
“Queremos levar os frutos do cerrado para todo o Brasil”, afirma Sandro.
Essa vontade do casal pode ajudar as espécies do bioma a ficarem em pé.
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- Descubra como a herança de uma das maiores poetas do Brasil inspira a fabricação de doces deliciosos.
- Saboreie essa farinha de mandioca artesanal que vem direto da feira livre para o seu prato!
- Um sabor que vale ouro: conheça os segredos da produção de açafrão, um verdadeiro tesouro do Cerrado.
- A floresta invertida: savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado clama por preservação ambiental - urgente!
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Quando o açúcar faz poesia
"Sou uma doceira e considero melhores meus doces que meus versos. Sou poeta por acaso, e doceira por convicção e necessidade."
Cora Coralina
Para Cora, cozinhar sempre foi tão natural quanto respirar.
Reproduzindo receitas compartilhadas entre gerações de mulheres da família, a poeta goiana usou os tachões de cobre da cozinha para criar uma mistura única de experiência e amor.
"Ela tinha ritual, arrumava os doces em cores como mosaico. A pessoa ia comprar doce e tinha que esperar ela embrulhar com calma em papel presente. Era poético."
Marlene Velasco, diretora do Museu Casa de Cora Coralina, local onde a poeta viveu e que hoje preserva sua memória.
Cora fazia doces como quem escreve poemas.
A fama foi tão grande em ambas as artes, que ela inaugurou uma nova era na cidadezinha de pouco mais de 20 mil habitantes. Hoje a Cidade de Goiás é patrimônio mundial, destino turístico por causa do Museu Casa de Cora Coralina.
E, claro, a tradição dos doces.
A história dela germinou, e muitas outras brotaram.
Mulheres, mães e avós da cidade ainda hoje sustentam as famílias com a arte do açúcar. Uma das primeiras doceiras de lá aprendeu tudo com a própria Cora. Era dona Antônia, conhecida como Toinha do Doce, hoje já falecida.
Era ela quem muitas vezes batia na casa da poeta para trocar segredos e aprender como Cora fazia para cristalizar as frutas nos enormes janelões de frente pro Rio Vermelho.
Hoje quem guarda esses segredos é a filha de Toinha, Eliana Aparecida Martins de Paula.
Como faziam as antepassadas, Eliana também sustentou a família com os doces que produz nos tachões.
É uma variedade de doces em calda, passas de frutas, ambrosia e até o tradicional limãozinho - uma espécie de bombinha de limão com doce de leite que é sensação na cidade.
Ela resolveu até abrir uma casa em frente ao Museu para vender suas encomendas, buscando a bênção daquela que inspirou uma legião inteira de doceiras.
E hoje se orgulha de fazer os doces mais parecidos com os lendários cristalizados de Cora Coralina.
"Cora foi a pioneira, a grande incentivadora de muita gente. Minha mãe via ela fazendo, e se espelhava nela.
Eu cresci nesse ambiente, ajudando e aprendendo."
Eliana Aparecida Martins de Paula
sugestão de consumo: bolinha de abacaxi
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A tradição da farinha nas feiras livres
Mas não é em todo lugar que se pode experimentar um produto antes da compra. Nas feiras livres pode.
Nascidas na Idade Média, as feiras livres são locais de troca de mercadorias, mas também de cultura e conhecimento.
Onde a relação de confiança entre feirante e freguês atesta a qualidade do produto. E é aí que entra o trabalho de Ailton Rezende de Souza. Não, ele não é feirante, mas produtor de farinha de mandioca.
É ele quem garante ao feirante que a farinha a ser vendida é feita com todo cuidado.
“Essa é a melhor farinha que tem”, afirma. “Quem compra a primeira vez, não deixa de comprar”.
E deve ser mesmo verdade.
A Farinha Goiana existe há 29 anos e é vendida principalmente para feirantes de Goiânia, Brasília e Trindade. Essa última, no estado de Goiás, é a cidade onde é produzida.
Ela é conhecida por ser uma das mais religiosas do Brasil devido à Festa do Divino Pai Eterno.
Com o tempo e sem assistência de especialistas, o produtor e empresário foi aprendendo a escolher a mandioca e a melhorar as farinhas.
E esse conhecimento foi agregando valor ao produto.
As 15 toneladas produzidas mensalmente variam entre a farinha tradicional, feita a partir do beiju, a branca, a amarela e a temperada, todas torradas em forno a lenha.
O sucesso entre feirantes que fazem questão de comprar a Farinha Goiana vem da preocupação que a empresa tem com o modo de produção, quase que totalmente artesanal.
Ela, claro, também é preferência na casa de Ailton, onde a farinha está sempre à mesa pra acompanhar as refeições.
Quando uma farofinha de jiló e abobrinha entra no cardápio do dia, o pessoal não deixa uma sobra! Um dos pratos emblemáticos de Goiás, o feijão tropeiro, tem a farinha de mandioca como um dos ingredientes principais.
“Tem gente da cidade morando fora do país que a família manda a farinha”, conta o produtor.
Como a farinha de mandioca faz parte da nossa cultura alimentar, o mercado é garantido. Mas existem dificuldades.
Os custos de matéria-prima e produção aumentaram. E a concorrência com as farinhas industrializadas impede o aumento no valor de venda. Por isso Ailton aposta nos relacionamentos proporcionados pelas feiras livres.
“A feira é tradição, lá as pessoas batem papo e se relacionam como amigos”.
sugestão de consumo: Feijão Tropeiro Goiano
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O ouro do cerrado
Fotos: engenheiros agrônomos Weslley Gonçalves e Manoel Siqueira
João Neto da Costa Silva lembra de estar passando em uma estrada e ouvir um senhor dizer à sua mãe que o açafrão da terra, o ouro do cerrado, traria desenvolvimento para a população local.
Ele tinha 6 anos na época, e já ajudava a catar o açafrão que a mãe tinha arrancado da terra.
Um trabalho árduo, que ela conseguia levar adiante com a ajuda de seus oito filhos.
A mãe de João, atual diretor administrativo da COOPERAÇAFRÃO (Cooperativa dos Produtores de Açafrão de Mara Rosa), estava investindo em um futuro incerto.
Mas o futuro chegou, e hoje envolve 300 produtores e 2 mil trabalhadores.
Por causa do açafrão, em 2016 Mara Rosa trouxe a primeira Indicação Geográfica (IG) do estado goiano.
O selo confere a importância do destino na produção do produto, e garante que somente a Região de Mara Rosa pode produzir o açafrão com este nome.
A região engloba os municípios de Mara Rosa, Amaralina, Estrela do Norte e Formoso, onde estão concentradas as plantações que fornecem para todo o Brasil, somando 26% da produção nacional e 90% da produção do estado.
O açafrão da terra é um rizoma, ou seja, um caule subterrâneo que mais parece a mistura de gengibre com batata-baroa.
Muitas pessoas o confundem com o açafrão originário da flor, mas ele é na verdade uma espécie de cúrcuma longa, que tem origem na Índia, e chegou à Mara Rosa com os bandeirantes no século 16.
Era usado para indicar a localização das minas de ouro.
O plantio era feito para delimitar áreas e, um ou dois anos depois, os garimpeiros sabiam onde encontrar o minério.
Com o tempo, a população tomou gosto pelo uso do açafrão na culinária, gerando interesse em seu plantio.
Nos anos 60 surgiram as primeiras plantações comerciais, e daí seu uso foi além de tempero na cozinha.
Seu potencial como corante chegou às indústrias de cosmético e têxtil, e por possuir substâncias oxidantes e ser benéfico para a saúde, foi também incorporado à indústria farmacêutica.
Por tudo isso que João acredita no potencial do produto.
Como produtor e integrante da COOPERAÇAFRÃO, enxerga a cooperativa como um elemento essencial para o desenvolvimento de toda a cadeia. Atualmente, é ela quem fiscaliza para a obtenção do selo de Indicação Geográfica, em parceria com a Emater Goiás.
Como a maioria dos produtores é da agricultura familiar e, muitas vezes, arrenda a terra para poder plantar, a cooperativa é um complemento que pode assessorar com maquinário, beneficiamento e comercialização.
Tem vezes que a sabedoria da natureza é capaz de nos encantar e surpreender, como se fosse truque de mágica.
É assim quando olhamos pro Cerrado.
Bioma que, apesar de enfrentar os extremos de muita chuva ou muita seca, se entende ele mesmo com o clima. E nessa relação, faz sua mágica: floresce uma enorme variedade de plantas típicas a cada estação.
São elas, as árvores, que mantêm a riqueza do Cerrado, considerado a savana com a flora mais biodiversa do planeta, na frente até das famosas savanas africanas. É nosso segundo maior bioma.
Mas quando o assunto é desmatamento, está em primeiro lugar.
Desde 1970 é o mais ameaçado: 50% da vegetação original já foi derrubada ou queimada por causa do avanço da agropecuária.
Nem isso faz do Cerrado prioridade quando o assunto é preservar. Outra ameaça tem sido a derrubada de árvores nativas para plantar as chamadas "plantas alienígenas", que não são próprias do bioma - mas representam lucro.
É a lógica capitalista tornando a agricultura uma atividade predatória.
"Se você tem plantas nativas sazonais, não é preciso se preocupar com água, elas são adaptadas. Agora, arrancar um pequizeiro, por exemplo, pra plantar uma mangueira, vai impactar o potencial hídrico do Cerrado. As reservas de água de todo o Brasil dependem do bioma."
Alcyr Viana, professor do Instituo Federal de Goiás.
Pra mudar essa mentalidade, é preciso que o povo do Cerrado olhe pra dentro de si - o segredo é valorizar o que a terra já tem!
Um esforço que deve ser coletivo: de quem planta, quem vende, quem cozinha e quem consome.
O professor Alcyr Viana, coordenador do mestrado em Educação Profissional e Tecnológica, do IF Goiás, participa de um projeto com foco nos chefes de cozinha.
Um edital seleciona restaurantes pra desenvolver cardápios só com ingredientes locais, com pratos que beneficiam o meio ambiente e incentivam a agricultura familiar.
"A gastronomia não pode mais ficar neutra, ela tem que ser política. Precisa participar desse movimento de valorização do Cerrado e mostrar tudo o que está por trás do prato"
Alcyr Viana, professor do Instituo Federal de Goiás
Na edição anterior da revista Comida com História, entrevistamos a ativista Elaine de Azevedo sobre o poder da gastronomia como ato político. E como isso vem gerando mudanças sociais em algumas partes do mundo.
O Cerrado, com sua imensa diversidade de alimentos, também está clamando por isso.
Um verdadeiro suco de aproveitamento!
E, claro, a flora vai muito além do pequi: de guariroba à castanha de baru, pimenta rabo-de-macaco a inúmeras folhas como Major Gomes e Taioba - a lista vai longe!
Sem contar o tesouro ainda pouco explorado que é a baunilha do Cerrado, uma iguaria com potencial enorme no comércio e que pode brotar tímida em qualquer terra do interior de Goiás.
São pelo menos 80 tipos de ingredientes já conhecidos, prontinhos pra virar refeição - fora os ainda não descobertos.
Comprar localmente é gostoso, mais barato e sustentável.
"Comprar só o que vem de fora faz com que destruam ainda mais nosso bioma pra plantar aqui o que bem querem. A sociedade precisa entender: valorizar ingredientes regionais em sua alimentação é beneficiar a si mesmo.”
Alcyr Viana, professor do IF Goiás.
É honrar as raízes da floresta invertida…
Se você é produtor e também tem histórias cheias de sabor, conta pra gente:
salada de frutas!
Frutas nativas como butiá, mangaba, buriti e outras não são tão comuns em mercados quanto maçã, banana e morango, por exemplo. Isso porque a agricultura convencional favorita as espécies mais vendáveis e rentáveis, deixando muitas outras em risco de extinção.
Por isso o trabalho de conservação de recursos genéticos de frutas nativas brasileiras da Embrapa é tão importante.
Para dividir com a sociedade o resultado desse trabalho, foi lançado pela empresa o livro A Arca de Noé das frutas nativas brasileiras.
cursos gratuitos
E a Embrapa também está com inscrições abertas para vários cursos. Veja alguns deles:
- Batata-doce: da produção de mudas à pós-colheita;
- Meliponicultura: criação de espécies de abelhas sem ferrão;
- Acesso a patrimônio genético nativo e conhecimentos tradicionais associados
anote na sua agenda
Nos dias 8 e 9 de dezembro acontece o IV Evento Internacional de Indicações Geográficas (IGs) e Marcas Coletivas. O evento, organizado pelo SEBRAE, é uma oportunidade de entender mais sobre as IGs, chancelas que reconhecem os diferenciais que os produtos e serviços que têm relação com seu território possuem.
presente de natal
Já que essa edição trouxe as delícias do Cerrado até você, vamos complementar o conteúdo com uma sugestão de presente: o livro FRUTOS do Cerrado - 100 espécies atrativas para Homo sapiens - Guia para coleta e usos em conjunto com o jogo O Cerrado é o bicho.
Ambos são fruto do trabalho de pesquisa no Cerrado que o autor, Marcelo Kulhman, faz há 15 anos.
outra sugestão
Nesse natal, que tal presentear com produtos que ajudam a valorizar o Cerrado brasileiro? Nossas sugestões são as lojas virtuais Central do Cerrado e Empório do Cerrado. Elas trabalham com produtores da agricultura familiar e cooperativas de pequenos produtores.