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"Se nós quisermos, Ele está sempre connosco" Entrevista a Ruy de Carvalho

Já conta mais de nove décadas de vida e 76 anos de carreira. Recebeu dezenas de prémios e a lista das peças de teatro, novelas e filmes em que participou atinge facilmente a categoria do interminável. Ao Igreja Viva, Ruy de Carvalho falou da fé na sua vida e na sua profissão.

Ruy Alberto Rebelo Pires de Carvalho é um dos mais célebres actores portugueses. É uma personalidade destacada do nosso país – a probabilidade de encontrar alguém que não saiba quem é Ruy de Carvalho ou não conheça alguma parte do seu trabalho é ínfima. Ruy de Carvalho é também uma daquelas pessoas que não precisam de motivo para serem entrevistadas – os vários motivos possíveis vão se apresentando automaticamente durante a conversa.

Personagens diferentes para gerações diferentes

Entramos no apartamento de Ruy de Carvalho. Só escrever esta frase já foge à normalidade das entrevistas que fazemos. Ao mesmo tempo que conhecemos pessoalmente Ruy, ele abre-nos as portas do espaço onde vive. Enquanto nos deslocamos para a sala é impossível não reparar, enquanto ouvimos música clássica, na grande quantidade de molduras penduradas na parede e de objectos nas prateleiras e topo dos móveis. “São tudo recordações que eu tenho, e prémios, coisas giras. Tenho muita coisa. Já não sei onde é que hei-de pôr”, confessa. Como Ruy não quer perder nada do que lhe oferecem, guarda tudo, e deixa que seja a filha tratar da logística das prendas e recordações. Mas isso não esconde a simplicidade de uma casa que não é mais que qualquer outra.

A vida de Ruy estava praticamente predestinada a seguir o caminho da representação. Ou, pelo menos, o das artes. Nascido a 1 de Março de 1927, foi a mãe pianista que lhe foi incutindo o gosto pela música, poesia e literatura. O bichinho do teatro não tardou em chegar – muito graças aos seus meios-irmãos actores – e ficou latente até aos quinze anos, altura em que iniciou a carreira de actor, em 1942.

Desde aí já representou dezenas de personagens completamente diferentes. Tendo começado no teatro, rapidamente se estreou no cinema, logo em 1951. Começa a surgir na televisão nos anos 80 e, a partir daí, a sua relação com o público português estreita-se. “Procuro sempre ser diferente”, diz Ruy, mas sem esquecer que a base é sempre a mesma. “A nossa obrigação como actores e como profissionais é desmultiplicar-nos e surpreendermos as pessoas com a nossa forma de representar. Sobretudo com a maneira como o fazemos. Com bastante honestidade, com bastante vontade de cumprir, como um serviço. É um serviço que nós fazemos aos nossos semelhantes com a arte que nos foi dada”.

Para uma geração, Ruy de Carvalho é Gonçalo Marques Vila, a personagem que interpretou na telenovela “Vila Faia”. Para a geração do jovem entrevistador, Ruy é o avô João em “Inspector Max”. Tanta personagem diferente, com o seu conjunto específico de características e forma de ser, deve ter algum peso, não? “Não”, responde. “Há umas que a gente se encontra mais com elas, têm mais que ver com a nossa forma de estar na vida. Mas não, assim que dispo a farda profissional do actor fico um cidadão normalíssimo.”

Ruy considera-se um cidadão normalíssimo mas é, na sociedade portuguesa e no meio artístico, uma referência. “Isso para mim seria uma grande vaidade”, afirma. Ruy não deixa passar uma oportunidade para se colocar ao nível do mais comum dos mortais. Tem “uma profissão bonita”, mas insiste que é um cidadão normal, dizendo que procura comportar-se e dar o exemplo de um. Mas há diferenças face aos colegas – como seria de esperar. E é Ruy a apontar, espontâneamente, um exemplo: “Normalmente não me benzo antes de entrar em cena. Ofereço é o meu trabalho. Ofereço a Deus o meu trabalho, não peço ajuda”.

É esta a forma que Ruy tem de “estar com Deus, com Cristo, com a Igreja”. “Todos nós fazemos parte de uma Igreja, alguns com mais fé, outros com menos fé, outros portando-se melhor ou pior – felizmente os homens são variados, não têm todos as mesmas qualidades. Eu vou fazer uma peça agora que tem a ver com isso, a forma de ser um bom católico e um mau católico. Há muitas formas, os homens é que às vezes estragam as coisas boas, não é verdade?”. Depende mais das pessoas do que depende da sua religião. “Exactamente. Mas há muita gente boa. Há uns que são maus mas é pena levarem para uma coisa tão bela, que é a religião e a fé, a maldade interior”.

"Uma belíssima católica"

Um alívio para este inexperiente entrevistador: não foi preciso muito esforço para a conversa chegar ao mais importante. Pronto, já dá para respirar um bocadinho de alívio. Não muito. Afinal continua a ser o Ruy de Carvalho que está sentado à conversa connosco. O nervosismo continua a confundir-se com a admiração. Mas bom… Voltemos ao que verdadeiramente interessa.

Há um sítio que é especial para Ruy de Carvalho, tal como é para muitos outros portugueses. “Eu quando lá vou sinto-me melhor”. Fátima ocupa um espaço importante na vida e no coração de Ruy. “Vou lá muito, gosto de lá ir e festejava sempre o aniversário do meu casamento lá, quando ia a Fátima com a minha mulher.” Ruth de Carvalho faleceu em 2007. Desde aí que Ruy vive sozinho e faz as suas coisas sozinho, com pouca ou nenhuma ajuda – apesar dos filhos oferecem ajuda, Ruy prefere ser ele a tratar das lides domésticas “enquanto estiver lúcido e bem”. “Ainda há bocadinho fiz o meu almoço,” conta. “Gosto da solidão quando eu a quero. Não é a solidão que nos obrigam a ter. Essa é horrível. Pôr-nos completamente isolados, isso é horrível. Mas há uma solidão que nós precisamos de ter. Todos nós temos. Todos temos o nosso momento de penitência, chamemos-lhe assim, de interiorização, de estar com Deus. Eu estou, muitas vezes. É fácil encontrá-Lo. Quando nós queremos”. A fé ajuda-o nesses momentos e ajudou-o a chegar até aqui, até hoje. “Deus está sempre connosco. Não nos dizem isso? E é verdade, ele está sempre connosco, se nós quisermos. Ele nunca nos abandona. Tanto que eu ofereço-Lhe o meu trabalho, a Ele e a Cristo, a Deus feito homem”.

Para Ruy, Ruth era “uma belíssima católica”. A ele bastava-lhe ir atrás dela, seguir os passos. “Ela ajudou-me muito. Ainda hoje me dizem «a sua mulher foi minha catequista», que é uma coisa que me honra muito. Era muita conhecida porque era realmente uma pessoa muito boa, e tinha tido uma antecessora também muito boa, trabalharam as duas em conjunto durante muito tempo. É bonito.”

Ruth tocou, por isso, o percurso cristão de muitos. “Ela tinha uma intimidade espiritual muito grande com a Igreja, com os bispos, com os padres, com isso tudo. Tinha essa intimidade mas tinha sempre a sua opinião. Eu tenho um livro que chama «Os Anjos não têm Asas», e esta era uma frase da minha mulher. A minha mulher é que dizia isso aos meninos: «vocês não têm que ser anjos, são todos anjos mas não têm asas. Têm é que praticar o bem como Cristo praticou e ensinou a praticar»”. Um pouco como disse o Papa Francisco na mais recente exortação apostólica, “Alegrai-vos e Exultai”.

E quando nos afastamos um bocado de Deus – seja qual for a razão? A eucaristia pode ser a forma de voltar ao caminho. “Deus quis-nos mostrar isso quando Cristo partiu. Perdoou todos que lhe fizeram mal, para ver se eles melhoravam. Ele diz, quando apedrejam a mulher adúltera, que atire a primeira pedra aquele que não tiver pecados. Todos nós temos um bocadinho, o próprio Papa noutro dia disse que também é pecador. Todos nós, de vez em quando, negamos Cristo. Sem querer. Noutro dia o Papa perguntou se olhamos nos olhos de quem damos a esmola. Temos coragem de olhar para a pessoa quando damos a esmola, ou desviamos o olhar? Damos como contributo? Todos somos, todos temos momentos em que pecamos, mas podemos reconhecer que pecamos. Se nós reconhecermos já estamos no caminho certo. Há instintos... a procriação pode dar para o torto, como costumo dizer. Procriar é uma beleza. Mas isso tem a ver com sexo. E às vezes pode ser perverso. Mas quando não é perverso, daí nasce amor, nascem os filhos, nasce a humanidade, crescem as sociedades. Neste momento há uma sociedade que anda a viver por fora da liberdade e dentro da libertinagem. Ainda há muita libertinagem. A libertinagem não tem nada a ver com liberdade. A liberdade é muito bonita e a sua base é o respeito. Viver em liberdade não é fácil. Porque exige de nós muito respeito pelos nossos semelhantes, muito, muito respeito”. Exige trabalho. “Digo de brincadeira que é a nossa ditadura. Temos que ter cuidado na maneira como lidamos com os nossos semelhantes, com os mais humildes, com os menos inteligentes, com os mais inteligentes, há tudo. A desigualdade dos homens está na cabeça”.

"Eu sou canceroso. E estou aqui vivo e tenho 91 anos. Só que nunca me entreguei a ele. Entreguei-me aos médicos e a Deus. Aqui estou a cumprir a Tua vontade, se me quiseres levar agora, lá vou eu".

"Morro como tiver que ser"

Falamos de Francisco. Um Papa que, sem alterar a doutrina, mudou a face da Igreja desde o início do seu pontificado, fazendo muitas chamadas de atenção. Para Ruy de Carvalho, no entanto, ele próprio é uma chamada de atenção. “A chamada de atenção dele é o sorriso maravilhoso que ele tem. Transborda felicidade, transborda humanidade, transborda carinho. Ele não precisa de dar um beijo para dar um beijo. A pessoa sente-se beijada por ele. É um dom extraordinário que ele tem. Gosta de fazer a vida ao pé dos seus semelhantes, o que é uma coisa muito bonita. Depois veste-se de branco, mas debaixo anda com botas velhas, para não magoar nos calos. Acabou com uma riqueza de que o público não gostava, que o povo não gostava muito, mas tem a outra riqueza, que é muito maior, que é a espiritual”.

Perguntamos a Ruy de Carvalho se a forma de ser do Papa trouxe pessoas de volta à Igreja. “Ele não deixa que a gente se sinta constrangida. As pessoas agarram-se a ele, não se colam mais porque a segurança não deixa. Se não ele ía lá para o meio e andava lá no meio todo feliz. Ele diz "eu tenho que morrer um dia. Se me matarem, mataram, acabou, olha, deixa estar". Nós morremos todos, não é, meu filho? Há pessoas que morrem antes de chegar a altura de morrer. A morte é um segundo. Aquela coisa que tira a energia do nosso corpo, a morte. E essa energia, para onde vai? Aquela energia que nos fez falar, agora, um com o outro, estarmos aqui a mexer-nos... Essa energia para onde é que vai quando a gente morre? Começamos a esfriar quando essa energia foge. Essa energia é espirito”. Termina a ressalvar que estas são opiniões do próprio, e que muitos não pensarão assim.

Acredita na eternidade. A morte não o assusta. E o envelhecimento, será que assusta Ruy? “Eu agora estou sentado, tenho 18 anos. Quando me levantar, tenho 91. Custa-me um bocadinho. Mas isso é a parte física. É a parte que se vai aproximando do tal minuto, do tal segundo. Às vezes não aproxima. Às vezes morrem bebés, que já cumpriram a sua passagem pelo mundo, já fizeram o que tinham que fazer. Há outros que morrem com 50, com 60, com 70, eu tenho 91. Ora bem, eu fui passando várias idades de morrer, por assim dizer. Eu sou canceroso. E estou aqui vivo e tenho 91 anos. Só que nunca me entreguei a ele. Entreguei-me aos médicos e a Deus. Aqui estou a cumprir a Tua vontade, se me quiseres levar agora, lá vou eu. A minha morte está na mão de Deus, não está na mão dos homens. Eu morro como tiver que ser. Há várias formas de morrer. Em nenhuma delas eu sinto que vou morrer. Não sinto que vou morrer a conduzir porque vou com cuidado. Não morro quando vou de avião. Se tiver que morrer, morro”.

“Pela família, gostava de ser lembrado como um bom avô, um bom pai, um bom filho. Acho que não fui mau de todo. Acho que as pessoas têm que crescer sem papariquices para saberem... Temos que ter no corpo anti-corpos, coisas que reajam... Não podemos estar sempre apoiados na mamã, no papá, toda a vida, não podemos estar assim. Temos que evoluir sozinhos”. Ruy de Carvalho foca-se sempre na família. Mas isso não quer dizer que esteja a falar apenas de quem lhe é mais próximo. “Depois com a nossa evolução, melhorar a nossa amizade familiar. Porque nós somos uma grande família. Pertencemos todos à mesma família, com cores diferentes. E às vezes esquecemo-nos disso e fazemos distinção, e não pode ser. São seres humanos”.

Ruy confessa que não tem paciência para as revistas cor-de-rosa. “Infelizmente, na minha profissão, há os de montra e há os de bengala. Os de montra são os que vêm para a montra. E depois há os que morrem na profissão que têm, velhinhos, e vão evoluindo com o tempo que vão tendo. Não vêm cá para mostrar que são melhores, ou que querem dizer isto ou aquilo. A maior parte não tem tempo para isso. Temos muita coisa para fazer”. Isto é: Ruy é um homem de família, da natureza. E Portugal tem neste momento, na sua natureza, uma cicatriz enorme, aberta já há mais de um ano. Pedrógão. Não hesita: “Vieram-me as lágrimas aos olhos. Não são só os humanos, as árvores também choram. As árvores também choram com o que sofreram e o que ouviram”.

“Já perceberam que eu sou um homem de fé, não é?”. Ruy de Carvalho torna-o claro nas palavras e nos actos. Tal como pensa em todos como iguais, trata todos como iguais. Sentimos isso ao conversar com ele, ao tirar fotografias, ao entrar na casa dele. Foi guiado pela sua esposa, mas agora guia-se a si mesmo e mantém-se firme na fé. Principalmente quando vai a uma eucaristia. “Quando lá estou, estou absolutamente entregue. Estou com Deus. Para mim o sacerdote naquele momento está a representar Cristo na Terra e Deus”. Até quando foi a uma igreja ortodoxa russa na Finlândia, sentiu “felicidade”. “Uma missa muito bonita, com cantares muito bonitos. São cristãos como nós, não é? Somos todos cristãos”.

Tem sido esta felicidade e esta fé que tem permitido a Ruy ser tão activo numa idade que normalmente já é rotulada de avançada. Ruy mantém a energia de que falou bem viva dentro dela, mesmo num meio, o artístico, que muitas vezes é visto com olhos menos simpáticos, mas onde são todos “amantes do teatro e portanto lá em cima são todos amigos de Deus.” No fim, destaca a palavra amor. “Com amor, tudo avança”.

Created By
Arquidiocese de Braga
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Credits:

Texto: João Pedro Quesado Fotos: João Pedro Quesado/Flávia Barbosa

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