O Fim da Infância Marisa Sasso Papa

O artista, o poeta e o santo devem combater os deuses reais (o oposto de ideais) de nossa sociedade - o deus do conformismo, da apatia, do sucesso material e da exploração. São "ídolos" de nossa sociedade venerados por multidões.

ROLLO MAY

Conheci uma criança que aos quatro anos sabia desenhar árvores extraordinariamente vibrantes e imaginativas. Para isso, qualquer material servia: crayon, giz, lápis de cor. Eram árvores notáveis pela clareza com que revelam os lóbulos bulbosos e a ramificação de veios de cada folha, numa espécie de cubismo e numa visão abrangente que teria encantado Picasso. Uma meticulosa observação das árvores verdadeiras e uma certa ousadia característica de uma criança de quatro anos se combinavam para a criação dessas surpreendentes obras de arte. Por volta dos seis anos, depois de um ano na pré-escola, ela passou a desenhar árvores-pirulitos iguaizinhas às das outras crianças. Uma árvore-pirulito consiste numa única bolha verde, representando toda a massa de folhas sem qualquer detalhe, espetada num cabo marrom que representa o caule - um lugar em que o pássaro de verdade jamais poderia viver. Outra criança, uma menina de oito anos, me contou, indignada, que sua professora da terceira série havia dito que os números negativos não existem. A classe estava fazendo contas de subtrair quando um garoto perguntou: "Quanto é 3 menos 5?". A professora insistiu que não existia tal coisa. A menina interferiu: "Mas todo mundo sabe que é menos 2!". A professora retrucou: "Vocês estão na terceira série e não devem saber essas coisas!". Então perguntei à garota: "O que é um número negativo para você?". Sem qualquer hesitação, ela respondeu: "É como olhar meu reflexo num lago. Quanto mais eu vou pra cima, mais ele vai pra baixo". Isso é a mente original em ação, a forma mais pura de zen. Essa voz clara e profunda está latente em nós desde a mais tenra infância, mas apenas latente. As aventuras, dificuldades e até mesmo os sofrimentos inerentes ao crescimento podem desenvolver e expandir essa voz, mas geralmente a sufocam. Ela pode ser desenvolvida ou atrofiada, estimulada ou inibida, dependendo da maneira como somos criados e educados na vida. Como a maioria de nossas instituições se apóia na fantasia lockeana de que um ser recém-nascido é uma tabula rasa sobre a qual o conhecimento é construído como uma pirâmide, tendemos a apagar em nossas crianças esse conhecimento que vem de cima para baixo e substituí-lo por um conhecimento simplista de baixo para cima. Quanto mais crescemos, mais esquecemos as raízes - disse E. E. Cummings num poema. A escola pode alimentar a criatividade das crianças, mas também pode destruí-la - e quase sempre é isso que acontece. Idealmente, as escolas existem para preservar e recriar o aprendizado e as artes, para dar às crianças as ferramentas com que construir o futuro. Mas quase sempre criam adultos medíocres e nivelados para suprir o mercado de trabalho com trabalhadores, dirigentes e consumidores. A criança que fomos e ainda somos aprende explorando e experimentando, bisbilhotando constantemente em todos os cantos - inclusive nos cantos proibidos! Mas, mais cedo ou mais tarde, nossas asas são cortadas. O mundo real criado pelos adultos acaba abatendo sobre as crianças, moldando-as gradualmente até transformá-las nos cidadãos que a sociedade espera que elas sejam. Esse processo involutivo é reforçado durante todo o nosso ciclo de vida, do jardim-de-infância à universidade, na vida social e política e, especialmente, no campo profissional. Nossas mais modernas e poderosas instituições educacionais, a televisão e a musica pop, são ainda mais eficientes do que a escola na inculcação de uma conformidade de massa. As pessoas são criadas como uma espécie de alimento para ser engolido pelo sistema. Lentamente, nossa visão começa a se estreitar. E então a simplicidade, a inteligência, o poder da mente que brinca se pasteurizam na complexidade, na conformidade e na fraqueza. Precisamos perceber que cada segmento de nossa cultura é uma escola; a cada momento somos colocados frente à afirmação de uma realidade e à negação de outras. A educação, o mundo dos negócios, a mídia, a política e, acima de tudo, a família, instituições que deveriam ser instrumentos da expansão da expressividade humana, se combinam para induzir ao conformismo, para manter as coisas no nível da mediocridade. A mesma coisa fazem nossos hábitos cotidianos. A realidade tal como a conhecemos é condicionada por suposições tácitas que acabamos considerando indiscutíveis depois de inúmeras experiências sutis de aprendizado na vida diária. É por isso que a percepção criativa nos parece extraordinária ou especial quando na verdade a criatividade é só uma questão de enxergar por trás dessas suposições tácitas o que está diante do nosso nariz. Conta-se que, durante uma viagem de trem, um passageiro francês, sabendo que seu vizinho de banco era Pablo Picasso, começou a resmungar e a reclamar contra a arte moderna, acusando-a de não ser uma fiel representação da realidade. Picasso quis saber o que era uma representação fiel da realidade. O homem tirou uma foto da carteira e disse: "Isto! Isto é uma imagem real - é assim que minha mulher realmente é". Depois de examinar a foto de todos os ângulos, virando-a de um lado para outro, Picasso respondeu: "Mas ela é terrivelmente pequena. E chata". É comum a confusão entre educação e treinamento, que são de fato atividades muito diferentes. O objetivo do treinamento é passar uma informação específica necessária ao desempenho de uma atividade especializada. Educação é a construção da pessoa. "Educar" vem da mesma raiz de "eduzir", que significa extrair ou evocar aquilo que está latente. Educar é portanto extrair da pessoa as capacidades latentes para compreender e viver, e não encher uma pessoa (passiva) de um conhecimento preconcebido. A educação nasce de um íntimo relacionamento entre a diversão e a exploração. Precisa haver permissão para explorar e se expressar. Precisa haver uma afirmação do espírito exploratório, que por definição nos permite escapar do testado e aprovado, e da homogeneidade. A conformidade que nos é ensinada na grande escola da vida assemelha-se ao que os biólogo chamam de monocultura. Se caminharmos por uma mata virgem, veremos dezenas de diferentes espécies de plantas por metro quadrado, assim como uma rica variedade de animais. As leis da natureza determinam que mudanças de clima e de ambiente produzam a variedade da vida vegetal e animal. Mas se andarmos por um campo cultivado, veremos apenas uma ou umas poucas espécies. Os animais domésticos e plantas cultivadas são geneticamente uniformes porque são criados com um propósito. A diversidade e a flexibilidade surgem do intercâmbio entre um máximo de variáveis que servem ao nosso propósito. Mas, sem essas condições, uma espécie fica presa num estreito leque de variáveis. A monocultura conduz invariavelmente à perda de opções, que por sua vez gera instabilidade. A monocultura é o anátema do aprendizado. O espírito exploratório floresce na variedade e na livre expressão - mas muitas de nossas instituições conseguem destruí-lo colocando-o em compartilhamentos estanques. Tendem a dividir o aprendizado em especializações e departamentos. Uma certa dose de especialização é necessária ao desempenho de uma grande tarefa, ou de qualquer campo amplo do conhecimento; Mas as barreiras que interpomos entre as várias especialidades tendem a crescer excessivamente. As profissões adquirem uma massa inerte que destrói tudo o que elas tocam. Estamos diante de uma proliferação de disciplinas e -logias que atuam primordialmente para proteger seu próprio campo profissional. Fragmentamos o aprendizado em detrimento da riqueza e da flexibilidade que deviam ser inerentes a um corpo vivo do conhecimento. Uma das muitas armadilhas no campo da criatividade é que não se pode expressar a inspiração sem técnica, não conseguimos nos entregar ao ocasional, ao acidente, que é essencial à inspiração. Passamos a dar ênfase ao produto, em detrimento do processo. Às vezes um artista tem uma técnica estupenda, é capaz de encantar as platéias com um deslumbrante virtuosismo e no entanto... falta alguma coisa. Todos nós, num ou noutro momento de nossas vidas, já tivemos a oportunidade de ouvir um concerto tecnicamente perfeito no qual esse algo misterioso não estava presente. O brilho superficial provoca uma reação automática ("Ual!") - é como conhecer uma pessoa belíssima do sexo oposto que acaba se revelando sem cérebro ou sem coração. Ela provoca instintivamente em nós esse "Ual!", embora uma observação mais cuidadosa revele que não havia ali grande motivo de admiração. Por outro lado, a maioria de nós também ja teve oportunidade de ouvir uma interpretação de um músico de rua que nos comoveu até as lágrimas e nos deixou imobilizados por um sentimentos palpável de admiração. Há algo de divino nessas interpretações raras e especiais, algo que não pode ser buscado intencionalmente. "Como um deus!" significa que o ouvinte sente que está diante do puro poder criativo, da força primal de que somos feitos. É isso que um deus faz: criar. Ele nos leva de volta às origens, como fez Einstein ao retornar a questões tão infantis como espaço e tempo e ao olhar para elas de uma maneira nova:

Um adulto normal nunca ocupa sua cabeça com problemas como tempo e espaço. Na sua opinião tudo o que havia a aprender sobre esse assunto foi aprendido na infância. Eu, ao contrário, me desenvolvi tão lentamente que só comecei a me questionar sobre tempo e espaço quando já era adulto.

O profissionalismo da técnica e os lampejos de agilidade são mais comuns e mais almejados que a pura força criativa, uma vez que nossa sociedade valoriza mais o virtuose do que o criador original. É relativamente muito mais fácil julgar e avaliar a técnica do que o conteúdo espiritual e emocional. Estes são intuídos diretamente, de uma maneira sutil, e em geral só se tornam evidentes para o mundo depois de um tempo considerável. A pior composição escrita por Beethoven, a pomposa e maçante Vitória de Wellington (também conhecida como Sinfonia de batalha), foi sua obra mais popular durante sua vida. Os Concertos de Brandenburgo, hoje considerada uma das obras musicais mais admiradas de todos os tempos, foram enviados por Bach ao príncipe de Brandenburgo como material de apresentação para um emprego. Bach não conseguiu o cargo. A estréia da Carmen só ocorreu um ano antes da morte de Bizet. Nessa época, a ópera foi um fracasso, condenada por muitos pela falta de uma melodia acessível. Logicamente, há exceções a essas ironias. Alguns artistas têm a sorte de criar obras revolucionárias e originais e ainda assim estarem em perfeita sintonia com sua época. Nem sempre é verdade que livros, músicas, filmes ou programas de tevê que vendem muito sejam puro lixo ou bobagem, mas freqüentemente é isso o que acontece. Os artistas que desejam e precisam vender seu trabalho vivem atormentados por dois fantasmas: um que sussurra ameaçadoramente ao seu ouvido direito: "É bom o suficiente?", enquanto o outro sussurra ameaçadoramente ao seu ouvido esquerdo: "É suficientemente comercial?". Essa tensão reflete os valores de uma sociedade que valoriza mais o produto do que o processo. O que se deseja é a coisa certa, a segurança de se estar adquirindo um produto cujo valor tenha sido ratificado por uma autoridade no assunto. Nada disso pode ser especificado a priori quando estamos lidando com a pura criatividade. Bloqueamos a criatividade quando a rotulamos como incomum, extraordinária, quando a segregamos em campos especializados como o da arte e da ciência. E a segregamos ainda mais quando criamos um sistema de estrelismo. O valor de uma obra não depende da sua qualidade, mas da fama do artista. Em 1988, dois quadros de Van Gogh, que não conseguiu vender uma só obra em sua vida, foram adquiridos por 50 milhões de dólares cada um. Se um artista se torna um astro - ou melhor ainda, um astro morto -, transforma-se num produto de mercado. Se ele muda e se desenvolve com o passar dos anos, como é natural em qualquer pessoa criativa, essa mudança é acolhida com protestos dos marchands. Às vezes um artista (ou professor, ou cientista, ou guru espiritual) apresenta algo extraordinário, se torna famoso e então seus dons ou seus talentos se congelam ou se pervertem. O trabalho criativo que comporta riscos e crescimento é desvalorizado, tratado como uma atividade supérflua ou extracurricular, um ornamento ou uma fuga da rotina da vida diária. O artista tem poucos mecanismos disponíveis para construir uma obra capaz de sustentar uma vida digna. "Chega-se à conclusão", diz Virginia Woolf,

pela enorme literatura moderna de confissão e auto-análise, de que escrever uma obra de gênio é quase sempre uma façanha de prodigiosa dificuldade. Tudo está contra a probabilidade de que ela brote da mente do escritor total e íntegra. Geralmente, as circunstâncias materiais estão contra ela. Os cães vão ladrar; as pessoas vão interromper; o dinheiro vai faltar; a saúde vai se arruinar. Além disso, o que acentua todas essas dificuldades e as torna mais difíceis de suportar é a notória indiferença do mundo. O mundo não pede às pessoas que escrevam poemas, romances ou contos; ele não precisa disso. O mundo não se importa se Flaubert encontra a palavra certa ou se Carlyle verifica escrupulosamente este ou aquele fato. Naturalmente, o mundo também não vai pagar pelo que não deseja. E assim o escritor, Keats, Flaubert, Carlyle, sofre, principalmente nos anos criativos da juventude, todo o tipo de perturbação e desencorajamento. Uma maldição, um grito de agonia, brota desses livros de análise ou confissão. 'Grandes poetas em sua morte miserável' - este é o estribilho do seu canto. Se, apesar de tudo isso, alguma coisa vem à luz, é por milagre, e provavelmente nenhum livro nasce inteiro, sem mutilações, como foi concebido.

É como se nossas instituições tivessem estabelecido um amplo acordo para nos forçar a comprimir nossas vidas dentro de um molde rígido e limitado. Abafamos, negamos, racionalizamos, esquecemos as mensagens da Musa porque nos disseram que a voz do conhecimento interior não é real. Quando tememos o poder da força vital ,ficamos presos no ciclo rotineiro e embotado das reações convencionais. "Alguma coisa está faltando!" O estado congelado de apatia, de conformismo e de confusão é a norma, mas não deve ser aceito como normal. Todo mundo tem cáries ou resfriados, mas isso não faz deles coisas normais ou desejáveis. Uma vida criativa, ou a vida de um criador só parece um salto no desconhecido porque a "vida normal" é rígida e traumática. Basta dar uma olhada à nossa volta e veremos os inúmeros fatores que minam a possibilidade de uma vida criativa. Mas eu acredito que toda cultura tem suas próprias defesas contra a criatividade. Às vezes idealizamos ou romantizamos alguma outra época ou algum outro lugar em que a vida criativa parecia mais integrada à estrutura da vida como um todo. Conheci artistas que desejavam ter nascido na Renascença; mas, na Renascença, os artistas se viam como descendentes degenerados da Grécia antiga; e os gregos se viam como descendentes degenerados de uma remota Idade do ouro (provavelmente cretense); e assim por diante. Aaron Copland fez um interessante comentário que nos mostra o que significava ser um compositor na América do início desde século. A arte, a música e a literatura eram tratadas, então como hoje, como atividades supérfluas. A música erudita só era apreciada por uma parcela mínima da sociedade, e esses só queriam ouvir os mestres europeus, não a música americana ou a música de vanguarda; e as platéias, então como hoje, acreditavam que para ser bom um compositor precisava estar morto. Isso era ainda mais verdadeiro nos anos 20, quando Copland desenvolveu sua arte. Mas, em vez de se queixar, ele nos diz: "O divertimento da luta contra os filisteus musicais, as saídas e estratégias, as acaloradas discussões com os críticos estúpidos, explicam em parte a excitação especial daquele período". É uma atitude que transforma a ignorância e a estupidez do mundo numa oportunidade para um jogo. O comentário de Copland indica que, não importa o que encontre no mundo, se uma pessoa criativa tem senso de humor, estilo e uma certa dose de tenacidade encontrará um meio de fazer o que quer apesar dos obstáculos. (Uma independência financeira também ajuda.) Mas ainda não chegamos ao cerne da questão. Até aqui, falamos como se existisse algo chamado "sociedade", que se defende contra a criatividade com todos os meios que mencionamos acima: educação, especialização, medo do novo, medo da força criativa pura. Mas isso que chamamos sociedade, instituições, escolas, mídia e tudo o mais não existe. O que existe são apenas pessoas que dão o melhor de sua imperfeição para a realização de suas imperfeitas tarefas. O cerne da questão é que, por mais que possamos reestruturar a sociedade, por mais recursos que um regime esclarecido possa destinar ao desenvolvimento da criatividade, das artes, das ciências, de uma educação livre e dedicada a uma profunda exploração da mente, do espírito e do coração, continuaremos no mesmo impasse. Existe algo chamado crescimento, que nos acontece não importa quais sejam as circunstâncias de nossa vida. Todos nós temos que aprender o que significa ser traído pela primeira vez, e pela segunda, e pela terceira, até que perdemos os últimos resquícios de inocência e saltamos para a experiência. Chegamos a um ponto - ou melhor, uma longa série de pontos - em que nossa inocência e o jogo livre da imaginação e do desejo colidem com a realidade, como os limites entre o real e o imaginário, entre o possível e o impossível. Tudo o que dissemos até aqui não deve ser entendido meramente como uma acusação às instituições educacionais, à mídia ou a outros fatores sociais. Podemos - e devemos - reestruturar muitos aspectos da sociedade de uma maneira mais holística, mas ainda assim a arte não será fácil. A verdade é que não podemos evitar o fim da infância; o jogo livre da imaginação cria ilusões, que se chocam com a realidade e se tornam desilusões. Perder a ilusão é uma coisa boa, é a essência do aprendizado, mas machuca. Se você imagina que poderia ter evitado o desencanto do fim da infância se tivesse tido algumas vantagens - uma educação mais esclarecida, mais dinheiro ou outros bens materiais, um grande mestre - , converse com alguém que teve essa sorte e verá que a desilusão foi a mesma, porque os bloqueios fundamentais não são exteriores, mas parte de nós, parte da vida. Além disso, os deliciosos desenhos de árvores infantis mencionados no início desde capítulo provavelmente não seriam arte se tivessem saído das mãos de um adulto. A diferença entre os desenhos de uma criança e os desenhos pueris de Picasso reside não apenas no impecável domínio do traço, mas no fato de Picasso ser um homem adulto, que passou por uma dura experiência e a transcendeu.

Capítulo extraído do livro “SER CRIATIVO (O poder da improvisação na vida e na arte)” de Stephen Nachmanovitch.

Created By
Maria Beatriz Cruz
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