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«o testamento vital não funciona» Ana Sofia Carvalho, especialista em bioética

Ana Sofia Carvalho é doutorada em biotecnologia, membro do Grupo Europeu de Ética em Ciência e Novas Tecnologias, professora associada com agregação do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Tem expressado algumas críticas ao Testamento Vital em Portugal. Fomos saber porquê.

Foto: Direitos Reservados

– Porque acha que a lei do testamento vital segue o «caminho errado», como li num artigo seu de opinião?

Neste momento já é uma opinião que tem factos concretos. Aquilo que aconteceu em Portugal, na altura da aprovação, foi uma corrida legislativa ao testamento vital, como se resolvesse todos os problemas do sistema nacional de saúde. O que aconteceu é que realmente os números são muito limitados. Há um número muito pequeno de pessoas que aderiu às declarações antecipadas de vontade.

É importante dizer que as declarações antecipadas de vontade em Portugal assumem duas formas que podem coexistir ou existir independentemente uma da outra. Ou seja, as declarações antecipadas de vontade têm a questão do testamento vital, que é um processo que as pessoas têm de preencher e que é bastante complicado e demorado; depois, tem uma outra situação que é a nomeação de um procurador de cuidados de saúde. Neste caso, em situações que eu não estiver com autonomia para tomar as minhas decisões, tenho a possibilidade de ter alguém que me conhece, que eu declaro que é a pessoa que quero que tome essas decisões, quando eu não esteja capaz de tomar essas decisões. [Essa pessoa] Tomará essas decisões por mim, partindo obviamente do pressuposto que me conhece o suficiente para saber aquilo que eu gostaria numa situação específica. Estes são os dois formatos da declaração antecipada de vontade.

O testamento vital é uma das formas e é obviamente aquela que é a mais controversa e mais complexa.

– Porque é que se seguiu o caminho errado?

Porque, para mim, é praticamente uma impossibilidade, porque eu não conheço daqui a X anos como é que será a minha situação clínica. Quando estamos a falar de um enfarte de miocárdio, podemos estar a falar de um enfarte de miocárdio que deixa sequelas gravíssimas e podemos estar a falar de um enfarte de miocárdio que não deixa qualquer tipo de sequela. Como posso dizer que se tiver um enfarte de miocárdio não quero ser reanimado, por exemplo?! Não temos nunca a informação clínica suficiente para tomar uma decisão capaz. Por outro lado, não temos a nossa história de vida. Aquilo que aprendemos com os doentes em fim de vida é que, quando sabem que têm um prazo de vida mais ou menos curto, agarram-se àquilo que é a sua história de vida naquele momento: agarram-se a batizar um neto, ver um filho a licenciar-se… coisas pequenas, mas que são extremamente importantes naqueles últimos momentos da vida. Portanto, também não conseguimos ter esta história.

Realmente não faz sentido ter um documento desta natureza, tendencialmente vinculativo onde faltam elementos para tomada de decisão, para tomar uma decisão antecipadamente.

– Como o procurador de cuidados passa-se o mesmo? Também é crítica desta opção?

O procurador de cuidados é um bocadinho diferente. Obviamente que também tem alguns problemas. Todos sabemos, do que se vai ouvindo, que muitas vezes a nossa família pode não ser a melhor das famílias. Apesar de tudo, é a pessoa em quem eu confio. A pessoa que eu acho que me pode representar naquela circunstância. E verdadeiramente aquela pessoa tem estes fatores: quer a situação clínica quer a história de vida. A pessoa conhece esses dois fatores no momento. Desse ponto de vista de objeções éticas de base não são obviamente tão graves. Apesar disso, considero que evidentemente essa decisão nunca pode ser vinculativa, porque se realmente ela não representar o melhor interesse daquela pessoa, é sempre o fim da medicina, que é procurar o melhor interesse daquela pessoa doente.

Se realmente existir um conflito entre aquilo que a equipa de saúde considere ser o melhor interesse daquela pessoa naquela circunstância e o procurador de cuidados de saúde, acho que realmente deve prevalecer uma decisão clínica. Obviamente que a equipa de saúde tem conhecimento que o procurador de cuidados de saúde não tem.

Acho que é realmente muito importante que exista [o procurador de cuidados]. Acho extremamente importante que seja envolvido na decisão, que ajude a tomar a decisão. Mas acho que a decisão é sempre uma decisão médica. Nunca é uma decisão que deva ser tomada por outra pessoa que não o profissional de saúde.

– É por isso que é tão importante a formação moral e ética dos médicos?

No fundo, o médico é o melhor procurador de cuidados da pessoa. Lembro-me perfeitamente que, quando pela primeira vez se começou a discutir o testamento vital, dois médicos, príncipes da medicina, que infelizmente já faleceram, o professor Daniel Serrão e o professor João Lobo Antunes, diziam: «Isto é a negação da boa medicina.»

Qualquer médico é verdadeiramente o procurador de cuidados do seu doente. Ele sabe da relação quase de amizade que tem com ele. Conhece perfeitamente o que o doente quer ou não quer em determinado momento. Claro que com a despersonalização da medicina, com esta medicina muito mais centrada na ciência do que no doente, este conhecimento que o médico pode ter do doente e não da doença é cada vez mais difícil e mais complexo. No entanto, acho que a resposta não é o testamento vital. É realmente reequacionar a relação médico doente para conseguirmos ter médicos que ajam verdadeiramente e que tenham conhecimento e competências para poderem ser eles os procuradores dos doentes e saberem porque conhecem a história, têm os dados clínicos objetivos o que é que aquele doente concreto naquela circunstância gostaria.

– Pelo que diz, para si, não é um problema haver poucos testamentos vitais registados, pois não?

Não é uma novidade nem é um problema. Era expectável que assim fosse. As pessoas em Portugal têm ainda muita confiança nos médicos. E realmente é muito difícil nós decidirmos o que vamos querer daqui a muito tempo. Estes números não se conseguem retirar. Mas eu sei, de fonte segura, que muitos desses testamentos vitais são de testemunhas de Jeová, que realmente utilizaram essa ferramenta para deixar registado que não querem transfusão de sangue. Os números factuais, tirando essa instrumentalização, são ainda mais baixos do que aqueles que aparecem.

Vê-se que a maior parte dos países está a mudar esta figura do testamento vital para o plano antecipado de cuidados porque chegou à conclusão que o testamento vital não funciona como está na lei.

– Li um texto seu em que salienta as mais-valias da integração de cuidados e dos planos de cuidados. De que se trata?

São duas realidades diferentes. A realidade escocesa realmente é onde as coisas estão a funcionar melhor. A integração dos cuidados é, de facto, começarmos a olhar para o doente e não para a doença. Ou seja, eu não sou a minha dermatite, que me trata o dermatologista. Não sou o meu pé diabético que me trata o médico especialista… Eu não sou um retalho. Sou uma pessoa integral, que tem uma equipa integrada a cuidar de mim. Independentemente de o doente ter um médico, o médico está em articulação com outras especialidades e com outro tipo de cuidados que sabemos que aquele doente precisa. Isso é no fundo o doente não sair retalhado na sua relação com as instituições de saúde, mas existir uma integração de cuidados.

Na Escócia, funciona muito bem com os dementes. Acho que este exemplo da COVID vem ainda reforçar esta questão. Eles conseguiram integrar o Ministério da Saúde como o Ministério da Segurança Social. Não temos apenas a equipa de saúde, por exemplo, de um doente com Alzheimer, mas temos também a sua equipa de cuidados sociais. Ou seja, a equipa que faz lar de dia, a equipa de voluntários que vai passear com a pessoa duas vezes por semana. Há essa integração entre profissionais e entre áreas. Essa integração dos cuidados pode ser feita em duas dimensões: integrar cuidados médicos, olhar para doentes crónicos com situação complexa e perceber que eles não vão precisar de um médico, mas de vários e a equipa vai ter de articular entre si. Mas também articular com a equipa social, com os profissionais que dão apoio em casa, com os enfermeiros, com os cuidadores formais e informais daquela pessoa. É uma experiência para a qual a nossa saúde não está preparada. Mas aquilo que nos vêm dizer inclusive os relatórios das grandes consultoras é que funciona esta lógica de uma saúde integrada e de equipas a trabalhar em conjunto para termos oportunidade de olhar para o doente e não para a doença de forma individual.

Créditos: Pixabay/geralt/21958 imagens

– E o plano de cuidados?

O plano de cuidados é aquilo que eu acho que realmente faz sentido, quando temos necessidade de ir ouvindo e de ir percebendo como é que a pessoa vai perder a sua autonomia. É um plano que eu vou construindo com a equipa que me trata e no qual consigo planear não só questões de saúde, se quero morrer em casa, se quero ou não quero medidas extraordinárias ou medidas mais invasivas em fim de vida. Mas também outras coisas mais quotidianas, mas que criam angústia em quem sabe que vai entrar num processo de perda de autonomia ou de final de vida no curto prazo. Por exemplo, as questões relacionadas com as contas nos bancos…

Na Escócia, lembro-me que davam exemplo de as pessoas pedirem se forem internadas de urgência para telefonarem ao filho para ir passear o cão ou o gato. Estas coisas realmente são, muitas vezes, mais importantes do que aquilo que vem vertido num testamento vital e se traduzem na possibilidade de termos um documento, que é no fundo um diário de como é que nós queremos viver a nossa morte. Enquanto estamos vivos como é que queremos viver a nossa morte? O que é que nós vamos querer naquela circunstância. É uma coisa até um pouco anglo-saxónica.

Em Portugal, a morte esconde-se. As famílias querem esconder do doente que ele está a morrer. Os próprios médicos têm dificuldade em comunicar este diagnóstico vital à pessoa. E, portanto, é uma forma de nós irmos construindo com aquela pessoa a possibilidade de ela dizer como é que quer viver o tempo que lhe resta. Dar à pessoa essa possibilidade.

– Seriam caminhos a seguir em Portugal?

Infelizmente, o sistema não está preparado nem as próprias pessoas. Habituámo-nos a este esquema de consultas de especialidade. Há poucas consultas, possivelmente só as de medicina geral e familiar, as de medicina interna que têm esta visão integral. O resto são só especialidades. O doente é visto ao retalho, aqui e ali. E não há verdadeiramente ninguém que olhe para os retalhos e para aquilo que são as diferentes interações do doente com o sistema de saúde para perceber de que forma é que realmente isto pode ser integrado.

– Se as pessoas e o sistema não estão preparados para as alternativas de que falou, qual a solução? Manter o que existe?

Nunca sou de opinião que se deve manter o que existe. [Deve] Começar a tentar fazer alguns projetos em algumas áreas. Não estamos preparados para fazer em todo o lado. Mas pegar, por exemplo, em algumas doenças específicas. Na Escócia, eles fazem cuidados integrados para doenças específicas que precisam de visitas muito sistemáticas às unidades hospitalares.

Relativamente ao plano antecipado de cuidados, com certeza não vai ser assim tão fácil, porque nós não estamos socialmente preparados para falar da morte. As pessoas não querem pensar na sua própria morte, não querem pensar na morte dos outros. A morte é uma coisa que é escondida. Tem de haver claramente esta mudança no paradigma de as pessoas olharem para a morte e perceberem que o facto de não falarem da morte e que o facto de vivermos esta conspiração de silêncio em relação à morte – aquela ideia de que vamos visitar um familiar nos últimos dias de vida e antes de entrar enxugamos as lágrimas, ou pedimos ao médico para não lhe contar sobre o diagnóstico, porque ele vai sofrer muito… No fundo, isto é assustador. Por um lado, estamos a proteger-nos do sofrimento. Mas, por outro lado, estamos a fazer com que aquela pessoa não possa expressar os seus sentimentos e não possa cumprir alguma coisa que desejaria. Mas seria uma mudança social muito grande relativamente às questões da morte e à forma como nós encaramos a morte: a nossa e a morte dos outros.

Entrevista conduzida por: Cláudia Sebastião

Credits:

Criado com uma imagem de Steven HWG - "Dementia, imagine the loneliness of not being around the ones you love (because you just can't remember them as they are now)", Pixabay/geralt/21958 imagens, D. R.