Prisão de ser Um olhar sobre mulheres e suas IDENTIDADEs no presídio feminino de aracaju

A mulher como infratora da lei e consequentemente como detenta é, assim como sua vida pública, algo relativamente recente. Seja por um Estado socialmente despreparado ou por perpetuar uma invisibilidade histórica, a mulher é inserida em um sistema penal que foi pensado por homens e para homens e que não considera as especificidades de ser mulher. De exemplos evidentes como a uniformização das detentas com as sobras dos uniformes dos presídios masculinos ou até mesmo a falta de discussão sobre gênero nesses espaços, o sistema penitenciário feminino carrega e reproduz nossos pré-conceitos e estereótipos do mundo aqui fora e por sua vez, findam por homogenizar, limitar e interferir diretamente na construção da identidade dessas mulheres.

Através das histórias de três detentas do Presídio Feminino de Aracaju (PREFEM), pretende-se mostrar como as mulheres subvertem esse sistema homogenizador e padronizante, e desvelam suas identidades.

Por Adele Vieira, Clarissa Martins e Lourdes Morante

Mantendo-se sentada um pouco mais distante e com o semblante sério acompanhado de um olhar 43, Beleza fez algumas ponderações e esboçou sorrisos ao ouvir algo engraçado, mas em geral foi a que menos falou entre as três.

Á primeira vista pode parecer que ela é tímida, introspectiva e talvez até marrenta, porém, depois de um tempo, fica perceptível que na verdade ela só prefere esperar o momento certo para falar e que basta dar-lhe um sorriso para receber outro como resposta. Esse jeitinho comedido e quieto aliado aos olhos semicerrados e à expressão paquerante, parece ser o seu maior charme, é tanto que quando perguntamos quem ali é a mais conquistadora, automaticamente e sem espanto ouvimos a resposta: Beleza!

Mesmo com um apelido tão característico não se importa com qual pronome utilizam para identificá-la, é capricorniana e dona de uma voz grave e marcante. A astrologia parece não ter errado, o que Beleza mais gosta de fazer é trabalhar e namorar. Fala com orgulho do trabalho de manutenção que executa dentro do presídio, assim como exalta a ocupação de auxiliar de pedreiro que exercia fora. Demorou 37 anos e dois anos de prisão para perceber que o que de fato gostava era estudar matemática, deixando bem clara sua admiração por números.

O percurso que a vida de Beleza tomou não permitiu aflorar nela desde cedo a afinidade pela matemática, saiu cedo da escola, no 3° ano do ensino fundamental. Agora estuda por conta própria com os livros disponíveis na biblioteca do presídio. Apesar de ter prazer em dedicar-se à estudar matemática, ela não tem certeza se vai investir nesse estudo quando cumprir sua pena "Eu sou só e preciso trabalhar também."

Dados nacionais referentes ao Relatório para OEA sobre Mulheres Encarceradas no Brasil de novembro de 2010 revelam que dos 800 presídios analisados 64,77% das mulheres são analfabetas, o resto são apenas alfabetizadas ou possuem o ensino fundamental incompleto. Além das condições adversas relacionadas à viabilização da escola e das aulas, pesquisas demonstram que, muitas vezes, as mulheres presas atribuem o aparente desinteresse pelas atividades educacionais dentro do presídio à falta de condições emocionais, resultantes da situação de tensão interna à instituição prisional e, também, preocupações com a família, em especial com atividades relacionadas aos filhos.

Beleza não é mãe e suas preocupações e interesses são escodas e direcionados a outras coisas quando com as mesmas mãos que aprendeu a se proteger dos trabalhos pesados, faz como ninguém ali dentro algo bastante delicado e minucioso: o bordado. Foi dividindo a cela com onze mulheres que começou o entrelace. De fio em fio, foi reconhecida por ser a melhor nessa arte. Beleza tece encomendas, presenteia as amigas e paqueras, e principalmente transborda seus gostos e saudades.

Quando pedimos para que trouxesse algo que a identificasse, as amigas Isabela e Lasy sugerem que fosse algum bordado do flamengo, seu time de paixão. Embora não tenha mais nenhum ali, já que quando os termina logo manda para casa através das visitas, Beleza traz outros bordados que parecem lhe interessar mais. Conversa vai, conversa vem e Beleza, com uma voz saudosa, chega a conclusão "Vou trazer o bordado com o nome do meu pai e da minha mãe", o qual praticamente não largou durante o tempo que conversamos.

Já tendo passado pouco mais de dois anos de um total dos quase dezessete a que foi sentenciada, ela considera que o decorrer do tempo no presídio é uma recuperação e também um aprendizado.

"Aqui tem que tomar vergonha na cara, aqui tem que se consertar, porque se for para entrar e sair pior do que quando entrou é melhor ficar aqui mesmo. Aqui nós estamos é numa recuperação"

Beleza conta que ali aprendeu a ser mais paciente, calma e menos impulsiva, e agora pensa mais antes de fazer algo. "Aqui é uma recuperação para quem entende o que é a vida e quer viver." O que beleza borda, conserta e enamora faz jus ao nome que dentro do PREFEM lhe foi dado.

Já Isabela chega calada e é percebida por Lasy, sua antiga companheira de cela, "Bela!". A dinâmica é sempre a seguinte: ela é questionada, mas quem responde, ou pelo menos ajuda nas respostas, é Lasy. "Eu gosto de ouvir", argumenta Isabela para esquivar-se das questões.

Com 22 anos recém completados, Isabela está na prisão há sete meses. A timidez que lhe é atribuída por suas amigas logo se desfaz quando nos conta que sua estadia no PREFEM se resume a dormir e namorar. Isabela namorou muito, foi casada duas vezes antes de entrar no presídio. Ao contrário do que solda as relações dentro dos presídios masculinos, onde a figura feminina, seja como mãe/esposa/filha sempre está presente na vida dentro e fora da prisão, a realidade dos presídios femininos é de abandono e descaso. Meninas como Isabela enfrentam os dados assustadores disponibilizados pelo Ministério da Justiça em que revela que 60% das mulheres não mantém uma relação estável uma vez que são presas.

Depois de mais tempo de conversa outra paixão é revelada, cozinhar. A paixão que não é aprimorada durante a passagem pela cadeia, pois o trabalho lá é voltado à atividades secundárias, como lavar pratos e fechar quentinhas, torna-se sonho. Isabela fala, empolgada, que pensa bastante em cursar gastronomia e tem planos com a família de abrir uma pastelaria, já que para ela, na futura condição de ex-detenta, abrir um negócio próprio é mais fácil que conseguir um emprego.

A criação de meios pelo Estado para reinserir ex-detentos no mercado é prevista desde 1984, quando foi criada a Lei de Execução Penal. Embora o Conselho Nacional de Justiça determine desde 2010 que de 2% a 10% das vagas para funcionários das empresas que contratam pelo poder público sejam destinadas a ex-presidiários, como Isabela, apenas 9 estados do Brasil aderiram às leis, o que dificulta a ressocialização da maioria das detentas.

No processo de identificação, sua timidez aflora "Eu não sei me definir, é tão mais fácil definir os outros". Como sempre, recebe ajuda de Lasy, que brinca sobre os defeitos de Isabela, "ela é insuportável, preguiçosa e indecisa". Quando pedimos que tragam algo que a identifique, fala sobre uma touca amarela, que logo fica claro o porquê da escolha. Fala entre risos que sua atual namorada gosta dela apenas quando está usando a peça, ''se ela acha bonito, né?''.

“Eu me considero mulher... só tenho o cabelo cortado, isso não faz de mim um homem.”

Nenhuma mulher que fuja dos padrões de feminilidade foge do termo ''mulher-homem'' comumente usado no PREFEM para referir-se às detetas que estabelecem relações com outras mulheres. Quando questionada sobre como sua sexualidade refletia fisicamente na sua maneira de se mostrar ao mundo, sem perceber, Isabela conseguiu sutilmente definir-se: “Eu me considero mulher... só tenho o cabelo cortado, isso não faz de mim um homem.” Para ela é claro, reconhecer-se enquanto uma mulher que gosta de outras mulheres não a torna um homem.

A risada de Lasy se ouvia do outro lado da grade que a separava das demais detentas. Chegou eufórica e sorridente à entrevista, mesmo sem saber muito bem o que falaria ali. Ao vê-la, você logo associa àquela sua amiga que não economiza piadas mesmo em um dia ruim e que te dá conselhos incríveis sobre como melhorá-lo. Entre brincadeiras, Lasy nos fala do primeiro ano e oito meses que está no PREFEM. Seu trabalho na cozinha do presídio, lhe rende sossego em meio ao caos interno, "Aqui a gente faz de tudo pra passar o tempo, ajudar na casa me ajuda a esquecer de tudo isso", comenta.

Mesmo cativando muita gente ali com seu jeito peculiar, Lasy deixa claro que sua personalidade e o modo como se impõe já incomodou muitas pessoas, "Eu sou um amor de pessoa, se você for minha amiga eu vou te ajudar sempre, mas quando eu fico com raiva, saia de perto." O Prefem para ela, assim como para Beleza, não é uma cadeia e sim uma reabilitação. Nesses anos de vivência entre brigas e bons momentos, com 22 dois anos nas costas, Lasy conta que se tornou menos impulsiva e que hoje consegue entender o que dois anos atrás nem pensava em questionar. "Minha família tinha muito medo das decisões que eu tomava, eu só ia lá e fazia o que tinha vontade."

A impulsividade que por muito tempo a definiu, também lhe trouxe aos 20 anos o que mais temia, a responsabilidade de ser mãe. Depois de negar a gravidez por nove meses e não hesitar negar em momento algum que não queria aquele bebê, Lasy conta que o aborto sempre foi uma opção. ''Não queria a responsabilidade de um filho, até o dia que meu filho nasceu, nunca quis ser mãe.''

A maternidade chegou para Lasy como um divisor de águas. Conta que costuma dividir sua vida em antes e depois da vinda do seu primeiro filho. ''Ser mãe é o que me define atualmente''.

"Eu não queria ter meu filho, tomei tudo que você podia imaginar, eu não podia ver um chá que tomava, até coca-cola com sonrisal no sol quente eu tomei."

Lasy fala do seu filho como uma dádiva que a motiva a lidar melhor com a prisão. A avó de Marcus Antônio o leva a visitar sua mãe uma vez por mês, durante uma manhã. Por mais limitadas que sejam as visitas, Lasy agradece pela oportunidade de poder vê-lo e hoje diz entender a importância de um filho em sua vida. "Até a hora do parto eu não queria aquele bebê, quando vi suas mãos vindo em meu peito, percebi quanto alguém precisava de mim no mundo."

No Relatório da Subcomissão de Promoção e Proteção de Direitos Humanos indicou que 87% das detentas brasileiras têm filhos e 65% delas não mantêm relacionamento com os pais das crianças (são mães solo). Lasy é mãe solo e tem ajuda da mãe em casa para cuidar do seu filho. Quando questionada sobre a paradeiro do pai, Lasy é firme em sua resposta "Não preciso saber onde ele está, eu tive consciência do que estava fazendo quando entrei aqui por causa dele, sei que errei, mas serei mulher suficiente pra mudar e sair de cabeça erguida, não preciso dele pra nada."

A autonomia que demonstra ao falar dos planos feito para quando sair de lá são a amostra do seu amadurecimento. Descendente de uma paixão de família, ela quer estudar enfermagem quando sair do PREFEM. Sobre seus planos com Marcus Victor, Lasy demonstra calma e zelo, pretende cuidar do seu filho sozinha "Vou transformar meu filho em um surfistinha."

Naquele espaço cinza com rosa, Lasy mantém sua identidade viva não só pelo cabelo loiro californiano e as roupas justas ao corpo, mas também pela mulher forte e independente que se tornou e que mostra ser ao mundo. O amuleto que carrega no pescoço, uma pimentinha que entrou com ela na prisão há mais de um ano atrás, representa para ela equilíbrio e vivacidade, qualidades que foi ganhando nessa luta contra o tempo.

Pelas 37.380 mulheres presas atualmente no Brasil. Pelas 3.430 que estão presas em locais inadequados, como delegacias e cadeias públicas. Pelos 54% delas que se identificam como negras ou pardas ou pelos 67% que não completaram o ensino médio. Não foi por elas e nem para elas que esse sistema foi feito. Mas deveria ser. A vida das mulheres e suas identidades importam, sejam dentro ou fora do PREFEM.

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Adele Vieira, Clarissa Martins e Lourdes Morante
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Adele Vieira, Clarissa Martins e Lourdes Morante

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