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turno da noite A vida desfasada dos trabalhadores nocturnos

O "dia" de trabalho não começa à mesma hora para todos. Enquanto alguns descansam depois das 8 horas laborais, outros iniciam-nas no correr da noite. Dizem-se trabalhadores nocturnos ou ainda madrugadores e vivem, à parte da maioria da população portuguesa, uma "vida ao contrário".

PERFIL DOS TRABALHADORES NOCTURNOS

O despertador não falha. 4h00 em ponto. Avelino já nem precisa dele, mas prefere não arriscar. Os clientes da padaria onde trabalha como padeiro há vários anos não lhe perdoariam o facto do pão quentinho não chegar a tempo do pequeno almoço. A custo, levanta-se sem fazer barulho para não acordar a mulher que dorme sossegadamente ao seu lado. Atravessa as ruas do Porto, desertas, silenciosas e frias, até ao seu local de trabalho, a pastelaria Rainha do Carvalhido.

35 anos de ofício madrugador

Há 35 anos que Avelino é padeiro. Há 35 anos que se habituou a dormir poucas horas por dia - ainda assim, faz questão de não dormir a sesta. O horário nocturno inerente ao seu ofício permitiu-lhe acompanhar o crescimento da filha, hoje adulta. Conseguiu levá-la à escola quando saía da padaria, assistir às reuniões com professores e acompanhá-la às consultas médicas, enquanto a mãe trabalhava. No entanto, o padeiro lamenta, ainda hoje, o pouco tempo passado com a mulher. Para além da clara falta de sono que o afecta e que se traduz em cansaço constante e desgaste físico, Avelino também salienta o problema das refeições fora de horas que lhe causam transtornos digestivos.

Avelino no seu posto de trabalho
Acabadinhas de sair...

É paixão que move Alessandro, mais conhecido por Alex, pasteleiro ou “confeiteiro”, como orgulhosamente se define com o seu sotaque brasileiro. Na família, são "confeiteiros de geração em geração". Custa-lhe levantar cedo, geralmente às 4h, mas não sabe “fazer outra coisa” e sente-se "um privilegiado" por fazer o que gosta. Quando o trabalho aperta, como é o caso na época natalícia, levanta-se, a custo, ainda mais cedo.

Alex, o pasteleiro

Por isso não dispensa uma sesta, ao invés do colega Avelino. Caso contrário, não é "a mesma pessoa”. Até porque, quando chega a casa, a mulher trabalha. Pelo que, segundo o próprio, não tem mais nada para fazer senão dormir, principalmente nas tardes de inverno. No verão, como bom carioca que é, gosta de aproveitar a praia, nem que seja para dormir a sesta por lá. Para o pasteleiro, a grande desvantagem de trabalhar de madrugada é não poder sair à noite com a mulher. “A balada, esquece. Balada? Não há balada.” A vantagem que retira deste horário é ter o dia livre após o serviço.

Noites afora, a rádio é companhia constante e imprescindível dos trabalhadores nocturnos.
As vozes da rádio embalam os gestos desta classe
São, reciprocamente, cúmplices e confidentes. O silêncio da noite propicia a intimidade.

Núria Melo é a jornalista que, ao microfone da Rádio Renascença, actualiza, de hora em hora, os trabalhadores nocturnos. O turno da noite, que assumiu há seis meses, durante os fins-de-semana, começa às 00h00 e termina às 6h00.

Núria Melo, jornalista

A jovem jornalista, em início de carreira, não vê, por enquanto, inconvenientes neste horário de trabalho. A nível social ou familiar não lhe causa transtorno algum. Não sente que perca algo. Adianta até a vantagem que tem em ficar com a tarde livre, após ter dormido umas 5/6 horas, para, nomeadamente, se entregar à sua paixão que é o teatro.

Porém, quando questionada sobre a hipótese de trocar o turno da noite pelo de dia, é uma Núria hesitante que admite essa mudança no futuro. Mas justifica-se: no turno da noite, a jornalista trabalha numa redacção vazia, cruzando-se rapidamente com os colegas na troca dos turnos. A locutora gostava de poder conviver com colegas mais experientes para poder tirar dúvidas, pedir opinião e crescer profissionalmente, razão única e pela qual se imagina a trocar de turno.

A indústria é um dos sectores económicos que mais recruta trabalhadores nocturnos. Máquinas que funcionam 24h/dia necessitam de técnicos que assegurem uma produção contínua. Eduardo e Rafael são dois desses profissionais que, por necessidade da entidade patronal, se sujeitam ao trabalho nocturno.

ACl, Braga

Eduardo tem 41 anos e há já 21 que trabalha por turnos rotativos na indústria. Mas é, sem dúvida, o turno da noite, das 22h às 6h15 da manhã, que mais lhe custa. Não gosta desse horário porque considera que a “noite é feita para descansar, para dormir, para estar em casa com a família.” Confessa que após esse turno, é-lhe difícil acertar o sono. O humor fica alterado e as refeições trocadas afectam-no fisicamente. Quando sai do turno da noite, a rotina inclui um banho, um leite e dormir até 15h00. Para o operário, a vantagem económica atribuída por lei não compensa as perturbações físicas e pessoais que lhe provocam este turno. Se tivesse essa opção, preferia não trabalhar de noite.

Já Rafael, outro operário, não desgosta de trabalhar de noite, por vários motivos. Desde logo, aponta que o extra no salário é muito bem-vindo. Pode chegar aos 200,00€ por mês. Para além do mais, o empregado aprecia também o facto de poder trabalhar no silêncio da noite, quando a fábrica fica mais tranquila, mais deserta, sem toda a azáfama e correria do dia. Sente-se até mais eficiente e produtivo, tendo mais liberdade para realizar as suas tarefas. Com o bónus de poder trabalhar ao som da música por ele escolhida.

A troca de sono é a maior desvantagem apontada por Rafael. Quando muda de turno, custa-lhe acertar o ritmo biológico e o corpo ressente-se fisicamente, principalmente no inverno em que os dias são curtos e mais escuros.

No verão, os dias rendem e consegue fazer mais coisas para além de trabalhar e dormir. No inverno, chega a dormir até às 18h00, deixando lhe poucas horas até entrar, de novo, ao serviço. O operário, que será pai muito em breve, acredita que trabalhar de noite seja mais complicado gerir quando o bebé chegar. Porém, sendo Rafael filho de trabalhador nocturno, pensa que o turno da noite não inviabilizará ter uma boa relação com o filho.

OS NÚMEROS

Avelino, Alex, Núria, Eduardo e Rafael são apenas uma amostra dos milhares de portugueses que trabalham à noite, quer em horário nocturno fixo, quer em sistema de turnos rotativos. Uns por opção, outros por imposição.

Segundo os dados do terceiro trimestre de 2019 do Instituto Nacional de Estatística (I.N.E), são, actualmente, em Portugal, mais de 530 mil trabalhadores em horário nocturno fixo e 835 mil por turnos rotativos. Ao compararmos os valores dos terceiros trimestres de 2017, 2018 e 2019, verificamos um acréscimo dos trabalhadores por turnos. O nocturno fixo, esse, baixou entre 2018 e 2019.

Evolução do trabalho nocturno em Portugal

Se não existe grande discrepância entre os sexos quanto ao trabalho por turnos rotativos, o mesmo não acontece com o horário nocturno fixo. Apenas 158 mil mulheres laboram nesse horário contra mais de 370 mil homens.

Os serviços são o sector de actividade económica que mais recorre aos trabalhadores nocturnos (cerca de um milhão de pessoas).

DIREITOS DOS TRABALHADORES NOCTURNOS

O código do trabalho define trabalho nocturno como sendo o trabalho prestado num período que tenha a duração mínima de sete horas e máxima de onze horas, compreendendo o intervalo entre as 0h00 e as 5 horas da manhã. Na falta de regulamentação colectiva de trabalho, considera-se trabalho nocturno o período compreendido entre as 22 horas de um dia e as 7 horas do dia seguinte.

Por admitir que este horário laboral tem um impacto na saúde e na estabilidade familiar e social dos trabalhadores, a lei portuguesa reconhece ao trabalho nocturno uma maior protecção legal.

Desde logo, é previsto um acréscimo de 25% relativamente à remuneração do trabalho prestado durante o dia. No entanto, esse acréscimo salarial pode ser substituído, mediante instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, por uma redução equivalente do período normal de trabalho ou por um aumento fixo da retribuição base, desde que não implique tratamento menos favorável para o trabalhador.

O trabalho nocturno pode ser realizado quer em horário nocturno fixo ou em sistema de turnos rotativos. Ainda assim, as trabalhadoras grávidas estão dispensadas de trabalho nocturno, cabendo ao empregador encontrar uma função compatível durante o turno do dia.

OBRIGAÇÕES DA ENTIDADE PATRONAL

EFEITOS DO TRABALHO NOCTURNO

Isabel Soares da Silva, professora catedrática da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, debruçou-se sobre os efeitos do trabalho por turnos sobre os trabalhadores, tendo mesmo sido ouvida pelo grupo de trabalho para alteração da lei laboral na Assembleia da República, em 2018.

Na investigação de Isabel Soares da Silva, "As condições de trabalho no trabalho por turnos, conceitos, efeitos e obrigações", a docente aponta consequências na saúde, nas esferas familiar e social e no contexto organizacional derivadas da laboração por turnos.

A Professora Isabel Silva e Joana Prata , também da Universidade do Minho, comprovam esses efeitos no estudo " Efeitos do Trabalho em Turnos na Saúde e em Dimensões do Contexto Social e Organizacional: Um Estudo na Indústria Eletrónica."

Em termos de saúde, realçam a falta de sono e a "inversão do padrão do ciclo sono-vigília que o trabalho nocturno exige"; as alterações na saúde psicológica, com alterações de humor e estresse psicológico; alterações no sistemas gastrointestinal, "especificamente perturbações do apetite, alterações de peso, diarreia e indigestão" e cardiovascular. Apontam ainda a possível relação entre trabalho por turnos e saúde reprodutiva e oncológica.

Na vida social, este horário de trabalho dificulta o convívio com amigos. Já no âmbito familiar, "a supervisão e a educação dos filhos que, se por um lado pode ser melhorada dada a possibilidade de um maior acompanhamento, por outro, pode comprometer o tempo de repouso dos trabalhadores em turnos em virtude de estes tentarem maximizar o tempo de interração com os filhos." Também o desencontro entre o casal "pode contribuir para dificuldades na comunicação e na relação sexual ".

Em contexto organizacional, apontam questões de segurança, produtividade e absentismo.

VANTAGENS E DESVANTAGENS APONTADAS

Resumidamente, podemos indicar cinco vantagens e cinco desvantagens do trabalho nocturno.

FICHA TÉCNICA

Maria Isabel Moura

Salomé Leal

AGRADECIMENTOS

(por ordem alfabética)

ACL Moldes: João Miranda e colaboradores Eduardo e Rafael.

Rádio Renascença: Núria Melo, Eunice Lourenço e Maria João Cunha

Rainha do Carvalhido: Valdemar Alves e seus colaboradores Avelino e Alex.